Paraíbas, paraibadas e o preconceito contra nordestinos

Imagem de Otávio Trinck por Pixabay

A construção do imaginário social nordestino foi parte de um projeto nacional de desenvolvimento que, a partir da definição de estereótipos, possibilitou a diferenciação das regiões. A rigor, o surgimento do nordeste tal qual o conhecemos hoje ocorreu apenas com a divisão regional de 1970, mas o preconceito em razão da origem geográfica contra os nordestinos não vem de hoje.

 Somos homogeneizados como baianos, paraíbas, retirantes, cangaceiros, paus de arara, cabeças chatas. Essa ideia vem sendo gestada especialmente desde o fim do século XIX, quando as elites nordestinas passaram a utilizar uma narrativa de vítimas da miséria e das grandes secas para, em nome do socorro aos flagelados e da realização de obras públicas, barganhar recursos da União. É o famoso discurso das secas, que se retroalimenta da indústria da seca e que aponta o homem como vítima desse fenômeno implacável, da praga natural que o bestializa, o condena à fome e sede, o leva ao banditismo. Premido pelas necessidades, o mítico nordestino se despojaria das antigas virtudes que se atribuíam ao sertanejo (um forte e bom “selvagem”), passando a ser capaz de qualquer vileza pela sua sobrevivência.

Nesse contexto, as elites agrícolas da região reclamavam por ter de usar a mão-de-obra dos pobres livres, tidos por “vagabundos”, enquanto no sul (hoje sudeste) a lavoura contava com o trabalho dos imigrantes estrangeiros. Atendendo a reivindicação dessas elites, criaram-se nonorte (hoje nordeste) colônias agrícolas subvencionadas pelo Império na seca de 1877-1879, mas essa prática foi alvo de desvio de verbas federais e corrupção, o que abriu caminho para outro famoso discurso contra nordestinos: o de que somos sustentados pelo governo federal e pelo que se arrecada em outras regiões. O desenvolvimento da cafeicultura e da industrialização firmaram o sul como centro capitalista do país, identificando os nortistas (incluindo-se os hoje chamados nordestinos) com o atraso e subdesenvolvimento.

Ainda entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, emerge o cangaço, um fenômeno do banditismo rural em que grupos armados se colocavam a serviço de latifundiários de quase todo o sertão do nordeste. Nessas milícias privadas integradas por sertanejos, o recurso à violência extrema era utilizado para resolver disputas de terra e demais questões (públicas ou privadas) de interesse de grandes proprietários de terra, contando, no mais das vezes, com a corrupção e conivência de autoridades locais. O cangaço despertava grande interesse da mídia nacional, chegando até mesmo a atrair a cobertura do The New York Times em 1931. De todo modo, o certo é que, desde o seu surgimento, a figura do cangaceiro se fortaleceu no imaginário popular, na produção artística e na cobertura midiática, delineando os contornos do nordestino como um homem bárbaro, valente e marcado pela crueldade.

No plano cultural, em 1926 era lançado o manifesto regionalista no 1º Congresso Regionalista do Nordeste. A partir daí, toma corpo o movimento que defendia as tradições e a cultura regionais como a chave do fortalecimento da arte nacional, distanciando-se, aqui, da concepção modernista que pretendia firmar a produção artística brasileira absorvendo influências vindas do estrangeiro, num projeto mais do que tudo estético, focado na linguagem. Neste ponto, o regionalismo incorporava em sua narrativa a vida dos trabalhadores rurais, a seca, as injustiças sociais, o messianismo, o coronelismo e vários dos elementos que, nas leituras levadas a cabo pelo sul, consolidavam no imaginário social um nordeste como espaço da tradição e do atraso. Tanto foi assim que a oposição do regionalismo à chamada vanguarda modernista, radicada em São Paulo e no Rio de Janeiro e tida como núcleo irradiador de uma nova gramática artística, levou Oswald de Andrade a tratar os escritores regionalistas como “búfalos do Nordeste”.

No entanto, de modo mais determinante, a desqualificação e o rebaixamento social dos nordestinos ocorrem no período de 1930-1950, época de intensa migração de trabalhadores do nordeste, sobretudo os de classes populares, para disputar o mercado de trabalho no sul. As tensões sociais inerentes a esse fluxo migratório fazem surgir as figuras do “baiano”, em São Paulo, e a do “paraíba”, no Rio de Janeiro, estigmas em que convergem os preconceitos gestados durante décadas e que fixam no nordestino as etiquetas de pobres, analfabetos, retirantes, flagelados e subalternos.

 A forma preconceituosa como as classes dominantes concebem os nordestinos é potencializada pelo preconceito racial e de classe, e se manifesta com toda a sua nitidez inclusive quando um sujeito nordestino de origem popular alcançou a presidência da República. Como bem lembrado por Durval Muniz de Albuquerque Jr., em 2003, o singelo fato de o ex-presidente Lula ter realizado uma festa de São João na Granja do Torto foi considerado como uma ofensa à liturgia do cargo por ele ocupado: “a festa foi vista, por estes colunistas, da mesma forma como se veem os nordestinos e os pobres, como brega, inoportuna, fora de lugar, folclórica”.

Não é uma aleatoriedade, portanto, que episódios que encarnam a brutalidade ou o ridículo continuem sendo tachados como “paraibadas” por alguns discursos que circulam impunemente nas redes sociais de nosso tempo. Ou, ainda, que o atual presidente da República trate pejorativamente as mais altas autoridades da região como sendo ”governadores de paraíba”. A xenofobia dirigida aos nordestinos teve suas raízes fincadas décadas atrás, mas ela tende a se fortalecer com a livre circulação dos discursos de ódio que empestam a paisagem cotidiana do espaço digital.

Referências:

“Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia”, Durval Muniz de Albuquerque Jr.

“A invenção do nordeste e outras artes”, Durval Muniz de Albuquerque Jr.

“Maria bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço”, Adriana Negreiros

“Elegia para uma re(li)gião”, Francisco de Oliveira.

diana-andrade

Diana é defensora pública e mestre em desenvolvimento regional. Escrever no Pandora Livre é parte do seu plano de se tornar uma burocrata descolada.

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