Defendendo a sociedade

 

Tradução de texto escrito por Wendy Brown e publicado num simpósio público sobre o que está em jogo nos Estados Unidos de Donald Trump. Texto original disponível em: http://www.publicbooks.org/the-big-picture-defending-society

Texto traduzido por Amanda Álvares Ferreira*e Flávia Belmont**, com prévia autorização da autora. 

 

Por que a maioria das vozes antidemocráticas nos Estados Unidos de hoje em dia são não apenas protegidas pelas liberdades constitucionais, mas estão também se envolvendo com elas? A cultura política neoliberal, em seus quase 40 anos de existência, não criou neofascistas, mas criou as condições para que eles pudessem representar-se como defensores da liberdade, supostamente protegendo as nações e os indivíduos de leis, políticas e normas culturais sufocantes, impostas por liberais¹ e pela esquerda. O neoliberalismo incitou esses desdobramentos por meio de um significado de liberdade fortemente atribuído ao livre-mercado, crucialmente combinado com um ataque impiedoso ao “social” e a tudo que isso abarca – poderes sociais, justiça social – e à própria ideia de sociedade. Elaboremos o problema da liberdade e do ataque ao social antes de falarmos da nova forma antidemocrática resultante da combinação desses fatores.

À liberdade, podem ser atribuídas várias interpretações. A variante neoliberal a reduz à ausência de coerção, especialmente pelo Estado mas também por qualquer pessoa ou coisa que tenha o poder de aplicar suas regras e normas. Para Milton Friedman, Friedrich Hayek e outros intelectuais neoliberais do pós-guerra, o único significado de liberdade é a ação que não sofre constrangimentos coercitivos. Todos os outros significados – liberdade como emancipação dos poderes da dominação, liberdade como capacidade e liberdade como participação na soberania popular – são simplesmente sem sentido do ponto de vista desses intelectuais.

A valorização neoliberal da liberdade como não-coerção tem vasto alcance, desafiando uma série de restrições à vontade individual ou corporativa, incluindo regulações estatais, impostos, monopólios públicos e políticas que visam justiça social e distributiva. Foi assim que a “liberdade” se tornou, nas últimas décadas, a principal palavra que animava as revoltas contra os impostos, os desafios às ações afirmativas, o incentivo a sistemas de voucher² para substituir o financiamento escolar público, além da privatização de bens públicos e, é claro, uma série de decisões da Suprema Corte aumentando os poderes econômicos e políticos de grandes corporações.

Uma maioria da Suprema Corte que estuda a jurisprudência neoliberal e serve aos interesses conservadores e empresariais tem sido especialmente importante para garantir que a liberdade continue correspondendo a esse significado e a essas práticas. À medida que as corporações começaram a se rebelar contra as intervenções regulatórias, com ênfase para intervenções fiscais do estado no final da década de 1970, elas logo encontraram apoio em uma Corte que estava disposta a usar a Primeira Emenda como uma ferramenta desregulatória a seu favor. Os movimentos políticos conservadores e cristãos também se beneficiaram da disposição do Tribunal em transformar a Primeira Emenda em um desafio à lei de igualdade e antidiscriminação.

Assim, ocorreu nas décadas recentes uma série de decisões da Corte que derrubaram, em nome da liberdade, regulações e mandatos que visavam assegurar a democracia e serviços de bem-estar social. Essas decisões motivaram as corporações a colocar dinheiro na política (para proteger o “discurso político”), acabaram com as restrições sobre propagandas comerciais corporativas (para proteger o “discurso comercial”); subverteram o compromisso das corporações para com o mandato do Affordable Care Act relativo à garantia de métodos contraceptivos (para proteger a “liberdade de consciência” das corporações); e permitiram que as empresas escapassem das cláusulas antidiscriminatórias relativas a clientes LGBT (para proteger a “liberdade religiosa” e, possivelmente, em caso ainda a ser decidido, “o discurso artístico”).

Ao garantir aos negócios estadunidenses novos poderes que os assemelham a “pessoas” com liberdades infundadas advindas da Primeira Emenda, a Corte também esfacelou solidariedades entre trabalhadores e consumidores em nome da liberdade, encorajando ataques a sindicatos e defendendo entraves corporativos a leis de ações trabalhistas. Não são, entretanto, apenas os conflitos entre capital e trabalho, ou entre capital e consumidores, que são fortemente influenciados pelo impulso anti-igualitarista da liberdade neoliberal. Estatutos sobre igualdade, regulamentações ambientais e de saúde, controle de armas e de bens públicos de todo tipo foram questionados e anulados com base na afirmação de que os direitos (orientados pela liberdade) não deveriam ser restringidos pelo governo federal ou por normas sociais.

O poder dessa nova e tão rígida forma de liberdade, que não suporta a igualdade e nem outras reivindicações de justiça, foi intensificado por outro plano da revolução neoliberal, a saber, seu ataque ao “social”. Famosamente expressado pela declaração de Margaret Thatcher, de 1987, de que “não existe tal coisa como a sociedade”, apenas “homens e mulheres e… famílias individuais”, esse princípio, extraído diretamente de Hayek, é facilmente compreendido como um desafio à provisão de serviços públicos e uma apologia à responsabilidade individual. Contudo, seu significado e efeito tiveram alcance muito mais longínquo, profundamente fincado na cultura social como uma rejeição a qualquer tipo de justiça igualitária, exceto aquela provida pelo mercado.

 “O social”, como insistiu Hayek, não tem espaço e nem significado nas ordens capitalistas. Por um lado, seria um conceito ilusório, transformando a sociedade em algo que não é. Por outro, o esvaziamento do social foi o veneno a partir do qual o totalitarismo cresceu. Planejamento social, bem-estar social, democracia social e, é claro, o socialismo — todas foram palavras que passaram a corresponder à noção de um poder estatal coercitivo. Todo e qualquer “social” é visto como uma interferência às tão produtivas desigualdades dos livros mercados; como substitutos, uma perturbação à ordem espontânea gerada pela interação de indivíduos livres acoplada à forte ideia do que é “o bem” para todos. A justiça social, argumentava Hayek, era uma “miragem” ou, pior, seria inevitavelmente transformada em seu oposto: uma ordem totalitária dominada por um estado interventor e ilimitado em termos de alcance jurídico e administrativo.

Se a crítica de Hayek sobre a justiça social foi polêmica nas décadas do pós-guerra, ela se tornou senso comum no conservadorismo liberal que temos hoje, para o qual o social é o inimigo da liberdade, e os “guerreiros da justiça social” (como os alt-right³ de hoje em dia os chamam) são os inimigos de uma sociedade livre. Com a ascensão do neoliberalismo, esse ataque ao social contribuiu com um significado de libertarianismo que alimentou o poder das grandes corporações, legitimou a desigualdade e desencadeou um ataque direitista radical aos membros mais vulneráveis da sociedade.

Por um lado, o desmantelamento do social e, com isso, o abandono das preocupações com a igualdade para além da sua forma legal, além do desinteresse em entender o poder além de uma coercitiva explícita, deram um novo significado e prática de liberdade, numa associação direta de liberdade com justiça. Nesse sentido, a liberdade nem chega a simplesmente superar qualquer outro princípio político: ela se torna tudo o que há. Por outro lado, a liberdade não é apenas um direito ilimitado, mas um direito exercitado sem qualquer preocupação com o contexto social ou suas consequências, sem restrições, civilidade ou cuidado para com a sociedade — seja ela como um todo ou como indivíduos que dela participam.

Fora do quadro neoliberal, o social é aquele âmbito em que as desigualdades se manifestam; onde as sujeições, as abjeções, as exclusões de classe, raça e gênero são vividas, identificadas, protestadas e potencialmente retificadas. Como sabe todo estudante da desigualdade que tem uma postura séria, o social é um domínio vital de justiça, porque é nele que as histórias e hierarquias de uma nação são reproduzidas.

Valorizar, de forma a não esvaziar o que se entende por poderes sociais, é a única maneira de entender a alegação de que existe um racismo estrutural, e por isso é fundamental reivindicar que vidas negras importam4, de explicar socialmente (na esperança de mudar essa situação) por que as mulheres trabalham mais e recebem menos, ou de explicar as altas taxas de suicídio entre adolescentes que não são cis/heterossexuais. Além disso, o social é o que nos conecta de maneiras que excedem os laços pessoais, as trocas comerciais, ou uma noção abstrata de cidadania. É onde nós, como indivíduos ou nação, praticamos ou deixamos de praticar a justiça, a decência, a civilidade e o cuidado para além dos códigos de utilidade do mercado ou da família nuclear. E é aí que a igualdade política, tão essencial à democracia, é feita ou desfeita.

Portanto, a alegação de Thatcher, de que “a sociedade não existe”, faz mais do que reduzir a democracia social ou os estados de bem-estar à interferência ao livre-mercado; ou entendê-los como criadores de dependência social. Essa alegação faz mais do que propagar a noção de que impostos são roubo. Faz mais do que culpar os pobres por sua condição, ou culpar “a natureza” das pessoas negras, dos latinos, e das mulheres de todas as raças por sua menor presença em profissões e posições de alto escalão.

A CULTURA POLÍTICA NEOLIBERAL CRIOU AS CONDIÇÕES NAS QUAIS OS FASCISTAS SE REPRESENTAM COMO DEFENSORES DA LIBERDADE

Essa alegação, na verdade, ao virar senso comum, torna invisível a desigualdade e as normas sociais geradas pelos legados da escravidão e do patriarcado. Ela reforça privações políticas tais como falta de moradia, de educação e de assistência de saúde. A liberdade sem a sociedade destrói a lógica pela qual a liberdade se torna democrática, ligada à consciência social, e implicada na igualdade política. Faz da liberdade o mais puro instrumento de poder, desprovido de preocupação pelos outros, pelo mundo ou pelo futuro.

Reduzir a liberdade a atitudes pessoais ilimitadas no contexto do repúdio ao social tem, ainda, mais uma consequência importante: ela transforma em livre expressão todo e qualquer sentimento histórico e político de perda de privilégio baseado em branquitude, masculinidade ou nativismo5, e a priva de qualquer conexão com consciência social, compromisso social ou consequência social. Tal perda é, então, convertida em ódio contra a inclusão social dos historicamente incluídos; ódio que se naturaliza como expressão consumada da liberdade e do americanismo. Com o descrédito à igualdade e à solidariedade social, a reprodução das desigualdades e exclusões históricas reproduzem a política da supremacia masculina branca sob uma nova roupagem do século XXI.

Agora, podemos entender como nazistas e outros nacionalistas brancos podem se reunir publicamente em “comícios de liberdade de expressão”; por que o autoritário homem branco supremacista na Casa Branca é identificado com liberdade por seus apoiadores por meio de seu comportamento “politicamente incorreto”, e como décadas de lutas políticas e princípios de inclusão social, antidiscriminação e igualdade racial, sexual e de gênero vieram a ser taxados como normas tirânicas e regras impostas por “guerreiros da justiça social”.

O que acontece quando a liberdade é reduzida a concepções superficiais sobre poder e direito, enquanto a própria ideia de sociedade é esfacelada, a igualdade é menosprezada e a democracia é reduzida a noções de mercado? A justiça social é minada, e expressões cruéis e provocativas de supremacia transfiguram-se em expressões de liberdade que a Primeira Emenda teria, supostamente, sido escrita para proteger. Mas não foi. Ela foi uma promessa aos cidadãos democráticos, promessa de que não seriam molestados pelo Estado em sua consciência individual, em sua voz e sua fé. Não era uma promessa de proteger ataques violentos contra outros seres humanos ou grupos, e também não era uma promessa de submeter a nação às vontades das grandes corporações. Infelizmente, a cultura libertária neoliberal de repúdio ao social abre caminho para esses acontecimentos.

O que se pode fazer, então?

Mais do que nunca, a esquerda deve contar com o fato de que não apenas o significado da liberdade, mas o seu contexto, é multiforme. A liberdade pode ser desligada da democracia e unida a outras modalidades políticas, incluindo o nacionalismo branco, o autoritarismo ou a plutocracia, que é exatamente o que está acontecendo hoje. Ignorar essa realidade, tratar a liberdade como um princípio invariável e absoluto, é desconsiderar como ela pode ser tão severamente desatrelada da igualdade, de modo que o peso dessa ação recaia sobre os mais vulneráveis.

Nesse contexto, ainda podemos acreditar na efetividade política de estender a todos o direito de falar, de congregar pessoas. Podemos também considerar que a primeira democracia conhecida do ocidente, a antiga Atenas6, não assegurava liberdade de expressão, mas sim isegoria, isto é, igualdade de expressão, o direito de todo cidadão de ser ouvido em assembleias sobre políticas públicas. Não garantia liberdade contra interferência estatal, mas isonomia, ou seja, igualdade perante as leis do estado. Não incluía eleições manipuladas e compradas, mas isopoliteia, a saber, votos igualmente ponderados e igual acesso a cargos políticos. A democracia em seu berço não estava enraizada nas possibilidades individuais, mas na liberdade baseada em três pilares da igualdade política.

Se não podemos nos dar ao luxo de ver quão profundamente o neoliberalismo removeu a liberdade do contexto e da cultura que a tornam um elemento fundamental de justiça e soberania popular, também não podemos ceder à direita, ao neoliberalismo e ao nacionalismo branco, que diariamente atraem novos recrutas no mundo Euro-atlântico. Plutocratas, nativistas e fascistas agarraram-se ao manto da liberdade para atacar a democracia, mas nós não podemos cair na armadilha de nos opor a ela em nome de outros valores — segurança, inclusão ou justiça. Pelo contrário, nossa tarefa é desafiar o discurso neoliberal e direitista sobre liberdade civil e de mercado, com um discurso que religa liberdade com emancipação (e, portanto, com justiça social) e com democracia (e, portanto, com igualdade política).

Por fim, devemos recuperar uma linguagem e uma prática do social para a vida política também em nosso próprio trabalho político. Reações da esquerda ao discurso e à política da direita tomam hoje, muitas vezes, a forma restrita de demandas por proteção jurídica e garantia de direitos contra experiências pessoais de medo ou opressão, forma essa que não permite, por si só, recuperar a perda do social. Elas têm inversamente, o potencial de consagrar essa perda [porque reduzem o social à judicialização da política como garantia de direitos]7. Recorrer a uma linguagem robusta sobre o poder social é a saída que pode prover uma narrativa mais profunda sobre as desigualdades e a falta de liberdade geradas pelo capitalismo, acopladas aos legados de subordinação racial e de gênero. Enriquecer a linguagem da “sociedade”, problematizando e incitando a discussão sobre o “social”, é um caminho que pode transformar o enfrentamento das desigualdades e da falta de liberdade em uma demanda geral do povo, sem que as atitudes de enfrentamento se desvirtuem, ou se traduzam em interesses específicos. Recuperar a linguagem e a prática do social são, finalmente, essenciais para refazer o vínculo entre liberdade e igualdade, cultivando o coletivo.

Sobre a autora: Wendy brown é filósofa e cientista política, professora da universidade de Berkeley.

 

Amanda Álvares Ferreira é doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Rio e mestre pela mesma instituição. Seus interesses de pesquisa são teorias feministas e estudos de gênero e sexualidade e teorias críticas das Relações Internacionais.

** Flávia Belmont é mestranda em Relações Internacionais pela Puc-Rio e graduada em Relações Internacionais pela UFPB. Pesquisa políticas de identidade em geral,  política LGBT no capitalismo internacional, militâncias queer e contra-hegemonias político-sexuais.

 

Notas explicativas das tradutoras:

¹ Liberais também podem estar incluídos entre aqueles que defendem o Estado de bem-estar social, pois o liberalismo existe em uma série de vertentes. Porém, no decorrer do texto, o liberalismo é associado à liberdade irrestrita que, ao justificar discursos de ódio, tende ao fascismo.

² Um voucher escolar, nos Estados Unidos, pode funcionar de diferentes maneiras, mas resulta essencialmente em estudantes recebendo dinheiro do governo — uma porção do que eles pagaram em impostos para financiar escolas públicas locais – e então usando esse dinheiro para fundar sua própria seleção educacional. Primeiro, fornecer vouchers normalmente significa tirar dinheiro das escolas públicas. Se as escolas públicas são financiadas por dólares de impostos, e uma porção desses dólares são realocados para escolas privadas via programas de vouchers, então as escolas públicas recebem menos financiamento, Além de financiamento reduzido para escolas públicas, não há garantia de que as crianças que frequentam escolas privadas aproveitem melhor o recurso. Então, redirecionar os fundos para escolas privadas por meio de programas de voucher significa que as escolas públicas ficam em pior estado, sem nenhuma garantia substantiva de que as escolas privadas estejam melhores. Mais informações: http://www.teachhub.com/what-voucher-system

³ “Direita Alternativa”. Grupo de direita supremacista nos Estados Unidos.

4 “Vidas negras importam” é a palavra de ordem, além do próprio nome do movimento Black Lives Matter, que luta por justiça social antirracista.

5 Legitimidade política de quem nasceu naquele território, em oposição aos direitos imigrantes.

6 As tradutoras reconhecem que Atenas não era uma democracia plena, pois excluía segmentos sociais, como escravos e mullheres do título de cidadania. Consideramos que o exemplo ainda é útil, entretanto, no que tange aos princípios aplicados aos cidadãos, isto é, aqueles aos quais se concedia o privilégio da vida política.

7 A frase entre colchetes foi uma adição das tradutoras.

 

 

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