Parágrafos tônicos

 

Lápide - pixa - sem licenca

Pôs-se pálido com o diagnóstico do médico. Súbito, buscou clérigo, físico e técnico de ginástica (rítmica ou artística). Quis o cômputo de seus dias últimos e, a este propósito, o matemático fora enfático: restava-lhe um quarto de década. No máximo. Érico, em seu íntimo, amaldiçoou toda a gênese árabe da aritmética, deu de ombros para a lógica numérica e resolveu adotar uma postura herética quanto ao futuro inelástico. Intrépido, ainda que com um pânico ínfimo, esqueceu-se da índole clássica e deu-se ao gosto frívolo pela música de plástico, pelos ridículos ritmos pornográficos.

Os amigos mais próximos o viam satírico, de humor ácido. Em antítese, contudo, percebiam seu âmago seriamente melancólico. Érico nunca havia sido desses cômicos cítricos: era um romântico congênito. Lástima que houvesse mudado tão rápido. Mas foi por obra de forças místicas ou de meras casualidades fáticas que aconteceu o fantástico: conheceu Débora.

Viu-a quando ia cancelar a matrícula no curso técnico de economia doméstica – contexto inóspito para encontros históricos. E depois de fitar ávido seus braços assimétricos e seu vestido com gráficos geométricos, deu cabo a uma conversa enérgica sobre suas suspeitas céticas quanto aos êxitos dos agnósticos (tentou os meio crédulos porque a viu folhear, sem ânimo, páginas de Hume, o britânico das ideias empíricas). Descobriram, nesse ínterim, que se conheciam desde a época em que tocavam, aos sábados, na sinfônica do maestro húngaro.

Ah, Débora era uma filósofa lindíssima! Cintura em ângulo, pernas atléticas, sorriso esfíngico, olhar hipnótico. Suas feições ibéricas encantavam-no de uma forma mágica. Neófito, sentia-se o cúmulo do patético diante daquela mulher esplêndida – para dizer o mínimo.

Érico, depois de Débora, transformou-se em amante platônico. Em suas divagações oníricas, via-os cônjuges em lua-de-mel na África, contemplando pirâmides e lembrando Cleópatra. Inventava, lírico, diálogos acerca de Sófocles e o mítico Édipo, da política aristotélica, das práticas criminógenas, das fraudes astrológicas, dos rótulos de vinícolas orgânicas ou das múltiplas expressões da cultura periférica.

Sua musa ia tomando os contornos de um ser numênico (ela tinha o germânico das Críticas como ídolo) e, nesse estado sonâmbulo, apaixonado crônico, acreditou que a vida lhe duraria mais de século. Esquecia-se do matemático, do ultimato que, no pretérito, lhe fora sentenciado em tom profético.

E então veio o pior – e mais dramático: houvera um equívoco no cálculo de seus dias últimos. Após o mórbido parecer clínico, bateu botas ao dia décimo: vítima de complicações cardíacas, consequências do pós-cirúrgico. Sem dúvidas, um fim trágico, mais ainda porque certo de que aproveitaria ao máximo o que restaria da existência efêmera.

Em sua lápide, prestei-lhe homenagem póstuma e, a despeito do clima fúnebre, gravei o mármore com letras itálicas:

Nada mais lúdico do que articular, sem mérito, as proparoxítonas do léxico em um contículo esdrúxulo.

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diana-andrade

Diana é defensora pública e mestre em desenvolvimento regional. Escrever no Pandora Livre é parte do seu plano de se tornar uma burocrata descolada.

Artecétera

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