Direito Penal (s)em Partido

Certa vez, um professor de Direito Penal tentou planejar junto à turma as indicações de leituras complementares para fins de acompanhamento e avaliação de conhecimento na disciplina. Começou pela indicação de Beccaria, mas eis que o “censor” apartidário imediatamente o intercalou:

– Professor, Beccaria era um rapaz desobediente que não honrou a nobreza do próprio pai. Um agitador que trouxe ideias muito esquisitas e questionou o princípio de autoridade, estrutura importante de qualquer sociedade. Portanto, conforme a cartilha da neutralidade, o senhor não pode indicar esta obra para fins de avaliação. Por gentileza, tente uma obra mais abrangente, que detalhe todos os aspectos, inclusive, defendendo o antigo regime e suas práticas investigativas e punitivas, portanto, se posicionando da maneira mais apartidária possível.

Aí o professor, admirado com a interlocução feita pelo seu censor discente, resolveu então fazer uma outra indicação:

– Então, que tal Tocqueville? Podemos focar em seus escritos penitenciários, já que se trata de matéria penal e podemos entender melhor as origens do Sistema Penitenciário. Afinal, Tocqueville captou a essência do modo de vida norte-americano e de suas instituições, que tal?

Porém, aí um outro censor se apresentou e questionou a escolha:
– Não, professor, um pensador muito aristocrático, reticente com relação à igualdade e ao próprio papel da democracia na produção das novas estruturas sociais. Ele flertava com o Antigo Regime ao mesmo tempo que professava os princípios liberais: muito oscilante e passível de interpretações extremamente partidárias. Nem consegue definir um conceito de democracia, para que vai nos servir um autor como este? Livrai-nos de mais um agitador…

Sem desistir, o professor resolveu então indicar um outro texto:
– Então, vamos indicar Memórias da Casa dos Mortos de Dostoiévski, pelo menos um clássico da literatura.

Mais uma vez, agora, ambos os censores retrucaram:
– Jamais, professor, esse tal de Dostoiévski é um mau exemplo danado, além de agitador conhecido. Ele conspirou contra o Czar e o monarca foi até bondoso com ele, mas continuou contando histórias que não deveria. Bêbado, leviano e jogador inveterado, trata-se de um péssimo exemplo moral para todos nós, não o queremos, porque também ele era partidário.

O professor, na esperança de pelo menos o desconhecimento permitir a indicação de um texto complementar útil aos conhecimentos que envolvem a disciplina de Direito Penal, resolveu:
– Então, passarei a indicar Thompson, historiador inglês, que tão bem descreveu o fenômeno criminal e a estrutura de controle social posta em marcha a partir dele por intermédio do clássico “Senhores e Caçadores”: o que acham, trata-se de um texto extraordinário, vamos trabalhar com ele?

Aí, mais uma vez, o primeiro censor exclamou:
– Professor, o senhor quer nos doutrinar com um vermelho? Comuna de uma figa, trata-se de mais uma obra que o senhor não nos pode indicar, porque o cara tomou partido das classes excluídas e olha que nem eram ainda os operários. Uma descrição histórica partidária e contrária aos liberais ingleses, novos senhores da Inglaterra. Esqueça Thompson…

Bem, pelo menos o professor animadamente, disse:
– De qualquer forma, conforme vejo pelas interlocuções contrárias às minhas indicações, vocês já leram estes textos. Ótimo, assim me despreocupo com clássicos estrangeiros e podemos nos ater a algumas obras mais próximas de nossa realidade.

Todavia, os censores discentes exclamaram:
– Deus nos livre, professor, não lemos essas obras. Elas estão no index das obras partidárias, com um resumo explicativo dos motivos do impedimento delas para fins de avaliação discente. Logo, lemos os resumos e estamos assegurando o cumprimento da regra contrária a qualquer doutrinação dentro de nossa sala de aula. Este é o nosso papel e o seu é nos avaliar de forma neutra. Mas, vamos lá, quais seriam as obras nacionais que o senhor pode nos sugerir?

Neste momento, o professor retrucou:
– Já sei, devo desistir de Joaquim Nabuco, Tobias Barreto, Heleno Fragoso, Vera Regina Pereira de Andrade, Vera Malagutti, Nilo Batista, Lênio Streck, Salo de Carvalho, Cezar Roberto Bitencourt, Luís Eduardo Soares, Elizabeth Cancelli, Julita Lehmgruber e Michel Misse, correto?

Aí os censores consultam tais autores no index eletrônico disponível no site da “Universidade Sem Partido”, utilizando os próprios notebooks e respondem:
– Certamente, professor, como o senhor adivinhou? São todos autores partidários que não podemos permitir serem aplicados em sala de aula, porque seria um verdadeiro exercício de doutrinação da sua parte.

Sem mais paciência, o professor então pergunta:
– Bem, infelizmente, me rendo, afinal, o que vocês sugerem como atividade complementar ao conteúdo da disciplina oferecida em sala de aula?

Um dos censores responde:
– Por que o senhor não nos manda copiar três vezes a parte geral do código em casa, isso seria apartidário e bastante neutro, que tal?

Mas, logo, o outro gestor da censura retruca:
– Jamais, códigos são coisas de liberais que não tinham o que fazer. Vamos, então, sugerir que o senhor nos avalie pelo desempenho do jogo de Pokémon que baixamos no celular. Não seria ótimo?
O professor, angustiado, disse:
– Será que não daria pelo menos para ser xadrez?
E aí, mais uma vez, ambos os censores:

– Nãoooo, professor, o senhor é um agitador que quer sempre colocar um rei em xeque. Deixe disso, homem!!! Preferimos o Pokémon.

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Charge: Latuff, 2012.

 

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