Entre musa inspiradora e autora inspirada, a opção é Rita Lee

Foto: Divulgação

Se um dia eu estivesse andando meio desligada e o gênio da lâmpada me interpelasse mostrando que minhas opções de desejos seriam me tornar uma musa inspiradora ou ser uma autora inspirada, eu não hesitaria em aderir à segunda alternativa. Não que eu não quisesse ter a felicidade diária de acordar e contemplar no espelho uma miss Brasil 2000 (ou 2016), com boca de cereja e dentes de marfim, corpo de veludo e pernas de cetim,  mas vamos combinar que sonhar em escrever uma vasta obra e ser mundialmente reconhecida por isso é milhões de vezes mais interessante.

Rita Lee Jones é uma das mulheres que fizeram essa segunda opção. E a escolha  foi feita em uma época quando as mulheres compositoras de renome eram pouquíssimas, uma meia dúzia de gatas pingadas além de Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Maysa… Talvez a magrelice e a irreverência de Dona Lee tenham facilitado as coisas, já que não convém a uma musa ser autodivertida a ponto de, logo na infância, fazer musiquinhas tirando uma onda de seu desfavorecimento curvilíneo em matéria de compleição física. Talvez, contudo,  essa mulher que fincou o pé na cena roquenrou nacional jamais pudesse ter escapado do destino de, com suas grandes canções, fazer um monte de gente feliz.

Em novembro deste ano, Rita Lee lançou sua autobiografia pela editora Globo Livros. Logo de cara, o leitor é advertido de que o texto daquela biografia tinha sido escrito pela própria cantora, sem recorrer aos onipresentes fantasmas (ghost writers) para dar uma força – ou uma forçada – na obra. A mulher é boa de letras, oras. Vez ou outra, é verdade, um personagem (apelidado de Phantom) dá uma desembaçada na memória da escritora e adiciona algumas observações ao texto, mas nada que usurpe a pena da mão da dona da história toda.

No livro, Rita Lee abusa de suas tiradas bem-humoradas, de expressões em inglês (afinal, ela é roqueira and filha de um americano) e descreve várias histórias incríveis de sua vida pessoal, desde a infância na família de migrantes aportados em São Paulo, passando pelo amorzinho com Roberto de Carvalho e o nascimento dos três filhos, até a chegada da netinha, filha de Beto Lee.  No entanto – e como não poderia deixar de ser -, a autora também solta o verbo quando fala de seus sucessos e fracassos, de sua trajetória de parceria, viagens e arranca-rabo com os Mutantes, da amizade com Elis Regina, dos ups and down down down no high society , e de tudo o que ela já viveu neste e em todos os mundos #vidaloka que ela já frequentou.

Um dos pontos altos da obra, embora ela toda seja bem altinha, são os comentários de Rita Lee sobre suas composições. Um após o outro, o leitor vai sendo convidado a rememorar os vários hits que a cantora emplacou ao longo de sua carreira e, nesse percurso, é inevitável não se surpreender com o protagonismo que o feminino assume em muitos de seus maiores sucessos.  Estamos falando de uma autora inspirada, é bom lembrar, e é por isso que o lugar central da mulher nas músicas de Rita Lee não é ocupado por figuras belas, misteriosas, apaixonantes, encantadoras, recatadas-do-lar, atriz-modelo-dançarina. Nada disso.

A mulher que canta Rita Lee é sujeito, ela fala, ela faz, ela deseja, ela chama o moço e joga a real mesmo, gente. OK isso de a gatíssima estar passeando e uma dupla de homens pra lá de talentosos soltar um “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…” , mas a roqueira-compositora de que a gente está falando inverte o ponto de vista e é ela quem convida o doce vampiro pra dar uns beijos. Quer ver? É só recapitular uns poucos trechos de Lança-Perfume (“Me deixa de quatro no ato/ Me enche de amor”), Mania de Você (“Meu bem, você me dá água na boca/ Vestindo fantasias, tirando a roupa/ Molhada de suor de tanto a gente se beijar”), Chega mais (“Eu conheço […] Essa tara de louco/ Esse fogo, esse jeito/ Escandaloso!/ Você é guloso/ E quer me seqüestrar/ Chega mais!), Banho de espuma (“Que tal nós dois numa banheira de espuma?/ El cuerpo caliente, um dolce far niente/ Sem culpa nenhuma”). E assim vai.

Por termos a oportunidade de ter tanto o que rir, se emocionar e se surpreender com Rita Lee no final deste ano, 2016 nos deu uns dias mais tragáveis em seus últimos meses. É tanta chateação e caretice se multiplicando por aqui que merecemos nos dar o prazer de ter  prazer com a mais incrível setentona da nossa época.

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Diana é defensora pública e mestre em desenvolvimento regional. Escrever no Pandora Livre é parte do seu plano de se tornar uma burocrata descolada.

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4 comentários

  1. Viva 2016!

    Em 2016 houve fato fabuloso sim, apesar de Vanessa Grazziotin falar que não, dessa forma equivocada assim:
    “O ano de 2016 é, sem dúvida, daqueles que dificilmente será esquecido. Ficará marcado na história pelos acontecimentos negativos ocorridos no Brasil e no mundo. Esse é o sentimento das pessoas”, diz Grazziotin.

    Mas, por outro lado, nem que seja apenas 1 fato positivo houve sim! É claro! Mesmo que seja, somente e só, um ato notável, de êxito. Extraordinário. Onde a sociedade se mostrou. Divino. Que ficará na história para sempre, para o início de um horizonte progressista do Brasil, na vida cultural, na artística, na esfera política, e na econômica.

    Que jamais será esquecido tal nascer dos anos a partir de 2016, apontando para frente. Ano em orientação à alta-cultura. Acontecimento esse verdadeiramente um marco histórico prodigioso. Tal ação acorrida em 2016 ocasionou o triunfo sobre a incompetência. Incrementando sim o Brasil em direção a modernidade, a reformas e mudanças positivas e progressistas. Enfim: admirável.

    Qual foi, afinal, essa ação sui-generis?
    Tal fato luminoso foi o:

    — «Tchau querida!»*

    [ (*) a «Coração Valente©» do João Santana; criada, estimulada e consumida. Uma espécie de Danoninho© ‘vale por um bifinho’. ATENÇÃO: eu disse Jo-ã-o SAN-TA-NA].

    Eis aí um momento progressista, no ano de 2016. Sem PeTê. Sem baranguice. Sem política kitsch.

    A volta de decoro ao Brasil.

    Feliz 2017 a todos.

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