Ódio construtor

sempre tem alguém para dizer o quanto o amor constrói. laços, vitórias, histórias, enfim. desde sempre, o amor tem tudo o que quer. ele é reconhecido, é desejado, é festejado, é contemplado. todos amam o amor. todos o veem como o filho perfeito, o parceiro comprometido, o amigo que queremos que seja inseparável. talvez ele seja tudo isso, mesmo. mas talvez, e só talvez, ele esteja ofuscando o brilho de outro personagem, o ódio.

esse outro, que é sempre renegado, humilhado, trancado nos porões dos sentimentos, também merece um pouco de… amor. ironias à parte.

rebelde, sem brilho, rasteiro e voraz. assim é o ódio, quando entra em nossas vidas. corrói por dentro, parece não dialogar com o racional. nem o amor, diga-se de passagem, mas vindo dele se releva. ele pode causar as dores que causa. ele tem a licença poética e ética — porque esta última, às vezes, se torna flexível quando ele irrompe sem introduções modestas. e, veja, até em um relato em que o ódio é protagonista, o amor tenta lhe roubar a cena. o amor é, realmente, carismático.

mas tem momentos e momentos. quando o amor se cala, quando, em situações complicadas, você busca por um conselho e só ouve o silêncio, aí algo acontece. lá no fundo, como um sussurro tímido, como um eco que vem vindo distante e ainda é incompreensível, é ele que vem em missão. o outro. o ódio que vem chegando para acolher, oferecer uma palavra de instiga — que dificilmente aceitaríamos em outras situações. a ação proposta, no entanto, tem um gosto duvidoso. ela está além do que se pode e deve fazer. mas tomamos o conselho como certeiro. e fazemos o que o ódio nos diz.

foi assim que me senti quando vi meu dente quebrado na palma da minha mão. tomado por um ódio arrebatador. daqueles que causam pequenos espasmos, quando se recorda o acontecido. quem perde um dente ao tomar um inocente gole de água? sem qualquer possibilidade de defesa. eu bati a pontinha do dente, aquela que você nem percebe que existe de tão insignificante, na borda do copo. era para ser apenas mais um momento nada memorável, mas virou um tormento. o dente bateu no copo ou o copo bateu no dente, não sei bem o que houve. só sei que, em poucos segundos, ouvi um estalo. era o dente. quebrando, caindo, não sei dizer.

eu nunca havia percebido o quanto eu gostava dos meus dentes. digo, gosto de comer. carne, especialmente. preciso deles. mas não era só isso. gosto de sorrir também. em menor escala, mas é uma dessas atividades que se faz no automático que eu não costumo achar ruim. sorrir, às vezes, me ajuda. a ter o que eu quero, a me sentir minimamente mais disposto, querido, aceito. é bom para fingir que está tudo bem também. embora esses sorrisos fingidos sempre causem mais espanto do que alento, em quem os vê de supetão. mas meus dentes eram mais do que isso. eles faziam parte do personagem que eu já tinha formado para mim. de quem eu queria ser e achava que já era. o meu personagem de mim mesmo tinha todos os dentes. era assim que tinha de ser. até o final. até o meu personagem simplesmente desaparecer da face da terra. ou eu não querer mais interpretá-lo e, eu mesmo, acabar com toda a sua farsa. mas quem resolveria isso seria eu. não o ódio.

resolvi que não era justo perder o dente assim. joguei fora o copo. marquei também, no mesmo dia, uma consulta ao dentista. tinha esperança que haveria algo que pudesse ser feito. dentistas fazem arcadas dentárias inteiras. não apenas um dente, mas vários. por que não poderiam resolver esse problema e colocar o meu dente de volta? com uma convicção parcial dessa verdade puramente inventada, enrolei meu dente em um pedaço de papel e esperei o dia da consulta. na minha mente, bastaria apresentar o dente, sorrir aquele sorriso quebrado e tudo estaria bem em muito breve. “é só colar”, disse a mim mesmo.

mas o ódio estava lá. eu não sabia ainda, por inteiro. ele vem em ondas, à noite; nem sempre consigo ver, ouvir ou sentir. ele apenas vem e fica ao meu lado, esperando o sol voltar ao lugar onde posso vê-lo.

chegando ao dentista, tudo foi ficando cada vez mais claro. depois do meu relato sobre a perda do dente, abri o papel em que ele estava guardado. evitei sorrir, porque senti que não era apropriado. e foi aí que veio o veredicto que eu temia: “não tem como colocar de volta”, disse aquele homem frio, de luvas. odeio luvas. elas têm um cheiro engraçado, que beira o ridículo, e é horrível. nada mais cheira a luvas, a não ser luvas.

havia uma explicação para tudo. nesse caso, o dentista me explicou que meu dente se tornou alvo fácil para queda porque já estava fragilizado. quando durmo, sem perceber, eu pressiono os dentes. uns nos outros. tipo em um movimento de quem toca violino, e põe o arco em constante atrito com as cordas. mas não tem violino, nem arco, nem som. “você está estressado?”, perguntou o dentista.

talvez estivesse, não lembro agora. mas lembro do ódio que senti. do dentista, do copo jogado fora, do meu dente frágil, do estresse que eu não lembrava se sentia ou não. se não estava estressado antes, agora estava. e a ideia de não estar estressado me estressava profundamente. assim como a ideia de estar. ser perguntado se eu estava, então, está em um patamar acima de tudo isso. um patamar onde todo o estresse do mundo tem de ser revertido em mais estresse para movimentar a produção de estresse que ainda poderia ser gerado.

não tinha como colocar o dente de volta, mas eu poderia evitar que os outros caíssem. sugestões? ioga, respirar fundo, massagens. “caminhe respirando fundo para uma aula de ioga e depois faça uma massagem”, deveria ser meu novo lema de vida. assim, quem sabe, eu manteria meus dentes. e minha sanidade mental.

o problema é que a segunda coisa, certamente, não era minha prioridade.

por meses eu tentei a receita de sucesso zen. fiquei de cabeça para baixo incontáveis horas. respirei o mais fundo que pude. respirei tão fundo que acho que senti o cheiro do meu pulmão. cheira a luvas.

tentei massagens também. de todo tipo. com homens, com mulheres, massagens eróticas e não eróticas. desenvolvi uma certa dependência, até. agora eu preciso de massagens, o tempo todo. simplesmente porque é bom mesmo. preciso de massagens para não ficar estressado por não ter massagens. não sabia que massagens podiam viciar. e isso me consumia de ódio.

mas, na verdade, também me afeiçoei à prática da ioga. fui ficando bom também. a questão não era mais os dentes. na verdade, meu ódio em relação à perda do meu dente apenas aumentou. aos poucos, toda vez que a noite vinha, fui ficando com ódio dela também. não conseguia não culpá-la. não era meu estresse que havia causado essa pequena tragédia, era a noite. quanto ódio se pode ter até morrer totalmente afogado em seus sussurros?

não foi com grande surpresa, portanto, que vi outro dente caído em minha mão. dessa vez por causa de uma colisão com um saquinho de doces. não consegui abrir com as mãos e usei os dentes. tentei, ao menos. não cheguei nem ao fim da tentativa e estava, em uma mão, com o saquinho ainda fechado; em outra, com um dente recém caído. mas continuei na ioga. eu conseguia colocar os pés na cabeça, daquele jeito engraçado e parecido com um lagarto pelo avesso.

mas o ódio não me largava. odiava ainda mais tudo. odiava, inclusive, a nova posição de lagarto pelo avesso que eu conseguia ficar. mas queria ficar nela o máximo de tempo possível. talvez, se pudesse receber uma massagem enquanto estava nela, seria perfeito. mas o mundo não era perfeito. nunca recebi uma massagem enquanto estava na posição de lagarto. pelo avesso.

um dia, recebi a visita de um antigo amigo. não sorri quando o recebi. ele ficou surpreso em me ver tão sério. sabia que eu gostava de sorrir falsamente. mas isso era em outro tempo. antes da ioga. agora eu só sorria quando era preciso, quando eu queria. e isso era praticamente nunca.

e, então, ele viu o tapete estendido no chão. “você está fazendo ioga?”, perguntou com uma genuína curiosidade.

“sei até fazer a posição da lagarta invertida”, disse. prometi a mim mesmo que não iria usar esse nome com outras pessoas. tinha de ter procurado como diabos era o nome certo da posição. queria parecer, pelo menos, entendido daquilo que eu não entendia. era o mínimo que as pessoas esperavam.

estava claro que o meu entusiasmo em saber a tal posição iria suscitar o interesse do meu amigo. por mais que eu não quisesse. claro também estava que ele iria insistir para que eu colocasse os pés na cabeça. colocaria, por puro exibicionismo, sem qualquer pedido. mas, pedindo, é uma sensação diferente.

pode ser posada? “pode filmar, se preferir”.

estava eu, em vídeo, em movimento. eu em meu tapete que era usado só para ioga. comprei esse tapete pensando que um dia alguém poderia querer ver as posições que eu sabia fazer. não poderia fazê-las em qualquer lugar. escolhi um que ficasse bem com as cortinas da sala. gostava do contraste do verde com o lilás. piegas, mas forte. parecia uma roupa que a minha avó tinha e só usava aos domingos. não tem nada mais “piegas, mas forte” do que avós.

ao final, no auge da minha lagarta, quando a ponta dos pés tocaram nos poucos fios de cabelo que tinha, tive vontade de sorrir. sorri como há muito não fazia. daqueles sorrisos que a boca fica um pouco entreaberta, que você está em um estado de total entrega. você está desarmado para o mundo.

em minha boca, não havia mais dentes. perdi todos. um a um, noite após noite. rangidos, atritos e dores que me fizeram odiar. cada dia mais, cada vez mais. odiei até meu último dente. e, depois que o último caiu, odiei todos caídos, fora de mim.

mas a ioga estava em dia… só não virei borboleta, porque dificilmente borboletas odeiam.

 

* Texto originalmente publicado em: https://medium.com/@sara_aras/ódio-construtor-5ccac02b992c

 

 

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clara-camara

Clara é jornalista e internacionalista. Doutoranda em Comunicação, pesquisa jornalismo político, com ênfase na cobertura de escândalos. Mas, na hora de escrever com o coração, prefere os temas ligados às desventuras nem sempre divertidas da vida "adulta".

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