Distorções sobre os Direitos Humanos

Seja na sala de espera do consultório médico, comentando algum caso de grande repercussão nacional; seja na mesa de bar, tomando um chopp com os amigos em meio a um breve papo-cabeça; ou mesmo no ambiente de trabalho, em um debate supostamente mais politizado… Que atire a primeira pedra quem nunca ouviu (ou até mesmo reproduziu) uma das mais célebres frases do quotidiano brasileiro: “Direitos humanos só servem para defender bandido”, ou seus derivados, como: “Os direitos humanos não visitam a família das pessoas de bem, só defendem bandido”, ou a clássica: “Cadê os direitos humanos da vítima!?”.

Foto - Alba Valéria Mendonça
Foto – Alba Valéria Mendonça

Não é preciso adentrar muito na história para encontrarmos momentos em que a grande mídia brasileira e as redes sociais repercutiram essa ideia, que tem bases muito sólidas no nosso senso comum. E não é difícil constatar que, frequentemente, a depender do quanto determinado caso gerou polêmica ou comoção nacional, tais frases vêm à tona de modo reiterado.

Neste turbulento início de 2015, sobretudo após ser colocada na pauta da Câmara dos Deputados a proposta de Emenda à Constituição nº 171, que visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, o discurso se volta abertamente contra aqueles que se posicionam contrariamente a esta alteração constitucional. Nos fins de março deste ano, por exemplo, uma reunião de ex-Ministros que já chefiaram a Secretaria Especial de Direitos Humanos, que tinha como finalidade a assinatura de uma carta de repúdio à redução, gerou uma avalanche de acusações de que os ministros (assim como os demais defensores de direitos humanos) eram “defensores de bandidos”, que “não lutavam pelos cidadãos de bem e suas famílias”, que deveriam “levar os bandidos para casa”, ou “sofrer pena capital por defenderem bandidos”.

Paralelamente, casos de graves violações de direitos humanos são aplaudidos pela população, gerando uma onda de críticas aos que defendem o respeito a direitos fundamentais básicos, como o devido processo legal e o direito à privacidade.

Foi o que ocorreu, por exemplo, no caso do desfile, em praça pública, de presos em carros de polícia, sob aplausos da população que assistia (não sei se o caso lembra mais Tiradentes ou as bruxas queimadas na Inquisição medieval), ou no caso do policial que pisou no ladrão baleado no ônibus e ainda disse que este fosse “ver o capeta de perto”. Nestes dois casos, a ação policial arbitrária foi aplaudida pela população e quaisquer críticas a ela foram veementemente condenadas (o apresentador Datena, por exemplo, foi bombardeado de queixas dos telespectadores ao questionar, em outro caso, uma ação irregular de policiais que atiraram em suspeitos à queima-roupa).

Confusões acerca dos direitos humanos

Mas o que leva grande parcela da população brasileira a repercutir esses discursos com tanta veemência, e por que se pode dizer que isso representa uma grande falta de conhecimento acerca do que são, de fato, direitos humanos?Em primeiro lugar, é imprescindível considerar que existe uma verdadeira confusão acerca do que, de fato, são os direitos humanos. E essa confusão não se dá apenas no meio do senso comum, mas do próprio mundo jurídico. Norberto Bobbio, em “A Era dos Direitos”, é um dos juristas contemporâneos que enfatiza esta questão. Não é fácil conceituar os direitos humanos, sobretudo porque eles são muito abstratos, representam muitos direitos, e possuem uma carga histórica pesadíssima. São, eles, direitos básicos para todo o ser humano viver com dignidade (mas quem elege que direitos básicos são o básico  para cada indivíduo ou sociedade?).

Foto: À Margem
Foto: À Margem

No meio desta confusão teórico-jurídica, a confusão no senso comum se mostra ainda mais embaralhada (e rasteira). A expressão “direitos humanos” no quotidiano brasileiro (e que fique claro que esta pecha de “defesa de bandidos” não é comum fora do Brasil) é utilizada para se referir a várias coisas diferentes: ora se usa a expressão para designar uma ideologia política, ora é usada para se referir a um conjunto de leis, normas jurídicas, ou direitos fundamentais, ora é usada para nomear instituições de defesa destes direitos, seus defensores, ou mesmo qualquer pessoa que simplesmente os considere relevantes.  Esse último sentido embasa o fenômeno que eu costumo chamar de “personificação dos direitos humanos”, perfeitamente exemplificado pelas frases “Lá vem os direitos humanos defender bandidos!”, “Os direitos humanos não visitam as vítimas!” ou “Onde estão os direitos humanos!?”. Bem, talvez seja mais uma questão de retórica ou semântica do que de conhecimento científico.

Seja o que for, o fato é que persiste no imaginário do brasileiro mediano um discurso retórico que aparentemente separa a ideia de direitos humanos dos demais tipos de direitos existentes, como se eles não tivessem relação entre si ou fossem relevantes.

Para o bom jurista, não há maiores dificuldades em se compreender que os Direitos Humanos dão base aos demais direitos existentes. Quando se fala em Direitos Humanos, remete-se, entre outras coisas, a direitos fundamentais previstos constitucionalmente, como o direito à vida, à integridade física, ao devido processo legal, a um julgamento justo, à privacidade, à liberdade, à igualdade, à educação, moradia, saúde, previdência, meio ambiente etc etc.  O próprio direito à propriedade privada é considerado um direito humano (para a tristeza daqueles que acusam os defensores de direitos humanos de comunistas-comedores-de-criancinhas – na realidade, Marx foi um dos maiores críticos dos direitos humanos conquistados na Revolução Francesa). Sendo assim, esse é um dos principais motivos que indica que há uma grande ignorância acerca do que, de fato, são os direitos humanos. Se alguma pessoa se diz contrária ao direito à saúde, por exemplo, o que se pode esperar dela?

A desqualificação dos direitos humanos e a quem isso interessa

Então por que no Brasil, ao contrário do que se passa nos países de capitalismo mais desenvolvido, a ideia de direitos humanos é tão desacreditada? A resposta a essa pergunta é muito complexa, e tem raízes na nossa própria história, em como a expressão “direitos humanos” passou a ser empregada no contexto brasileiro e em como o discurso da grande mídia corporativa passou a propagar uma verdadeira “campanha difamatória” (no dizer do Professor Luciano Oliveira, em seu livro “Imagens da Democracia”) contra tais direitos, na intenção de desqualificá-los perante a opinião pública.

A expressão “direitos humanos” passa a ser difundida no Brasil no contexto do combate à ditadura militar brasileira. E, em nome do resgate da democracia, os movimentos sociais passam a utilizar-se da ideia de direitos humanos para combater o regime autoritário. Parte da classe média militante (artistas, advogados, estudantes, acadêmicos) encontrava-se presa e sob tortura nas penitenciárias brasileiras, se deparando, pela primeira vez na história, com a brutalidade e falta de dignidade que tais espaços representam para a população carcerária. Defender o direito à dignidade dos presos foi, posteriormente, uma das principais prioridades destes militantes, quando anistiados.

Com a redemocratização, os movimentos que se organizaram com base na defesa dos direitos humanos passaram a englobar basicamente três principais pautas: a dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (saúde, moradia, educação etc), a dos chamados Novos Movimentos Sociais (movimento de mulheres, de gênero, negro, indígena etc) e o direito dos presos comuns (especialmente o combate à tortura e às arbitrariedades policiais).

Como os movimentos de defesa direitos humanos passaram a representar grandes pressionadores do Estado para que sejam garantidos direitos sociais e econômicos para grupos vulneráveis (pobres, prostitutas, crianças, idosos, indígenas etc), eles passam a um grande calo no pé dos setores empresariais e das elites em geral. E a melhor maneira de fazer com que os direitos humanos não ganhem espaço é exatamente DESQUALIFICANDO-OS, principalmente através da ação de grandes gigantes da mídia e de seus pit bulls treinados como jornalistas policiais.

Reprodução/youtube
Foto: Reprodução/youtube

Se antes tínhamos o famoso Carlos Alborghetti para descer o “porrete” nos defensores de direitos humanos, hoje temos sua versão gourmetizada, em figuras como a da Rachel Sheherazade, famosa por sua frase “adote um bandido” e por julgar escusáveis situações de linchamento de suspeitos da prática de um crime.

Desqualificar os direitos humanos é um dos negócios mais rentáveis da televisão brasileira. Nós só precisamos compreender para quê essa desqualificação serve, senão para colocar a opinião popular contra qualquer movimento que pleiteie igualdade, moradia, saúde, educação, direitos dos povos indígenas, direitos das mulheres etc etc. Talvez os grupos que propagam esta desqualificação não sejam os que mais necessitam de que estes direitos sejam realizados. Ou talvez simplesmente esses grupos se beneficiem de sua não-realização.

De toda forma, seja lá quais forem os espaços que ocupamos, ou os lugares que frequentamos, ou as discussões que temos no dia-a-dia, desconfiemos dos discursos de senso comum. Como dizia o Bertold Brecht: “Desconfiai do mais trivial e examinai, sobretudo, o que parece habitual”. Reproduzir ignorâncias sem desconfiar nos transforma exatamente em nos seres ignorantes que queremos combater.

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clarissa-alves

Clarissa é professora e doutoranda na área de direitos humanos e desenvolvimento. Pesquisa feminismo, migrações e relações de trabalho. Se calhar, está disposta a largar a academia e viver de sua arte.

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