Cinema: Uma mercadoria comprada nos shoppings

Foto: Bárbara Hasse
Foto: Bárbara Hasse

Foi-se o tempo em que ir ao cinema significava “ir ao cinema” de verdade. Ir ao cinema hoje mais se parece com “ir ao shopping, comprar uma bolsa, comer um Burger King e aproveitar pra ver se tem algo legal passando”.

Não é nenhuma novidade que a lógica do mercado domina o mundo cinematográfico e que isso se reflete não apenas nos custos e na arrecadação das megaproduções hollywoodianas – que chegam a valores estratosféricos, como os US$ 332 milhões empregados em um dos Piratas do Caribe, ou como os US$ 2,780 bilhões arrecadados em Avatar – mas na própria avaliação da qualidade de um filme, que passa a ser aferida não apenas com base na criatividade ou conteúdo da produção, mas a partir do quanto ele repercutiu financeiramente. O próprio mercado passa a ditar quais produções são qualificadas e marcarão a história do cinema, e quais nunca serão.

Mas, além disso, o mercado tem dominado de tal maneira a sétima arte que não é difícil observar o quanto a própria cultura do “assistir a um filme” tem se modificado ao longo do tempo. Vejamos três mudanças culturais que têm origem na lógica do mercado e que tem alterado bastante a nossa forma de vivenciar o cinema contemporaneamente:

  1. A tecnologia e o entretenimento doméstico

Em primeiro lugar, você pode nunca mais na sua vida ir ao cinema e mesmo assim estar completamente atualizado/a com relação aos filmes que mais têm movimentado as bilheterias. A tecnologia tem avançado de tal forma que é possível, por exemplo, durante a semana do Oscar, assistir a todos os filmes indicados à premiação na tela do seu próprio computador ou Smart TV, sem precisar pagar nada. Além disso, cada vez mais se populariza um tipo de mercado que permite que o fã de cinema tenha a sua disposição um leque de filmes e séries, com um pequeno custo ou sem custo nenhum. É o caso do Netflix, Popcorn time, Scoop vídeos, Blockbuster, além de vários outros sites que disponibilizam filmes online, muitas vezes quando ainda estão nas salas de cinema. Com tudo isso em jogo, o hábito de ir ao cinema está claramente em crise.

  1. A individualidade

Desse avanço tecnológico decorre uma outra característica da mudança cultural: a experiência coletiva do cinema passa a se transformar cada vez mais em uma experiência predominantemente individual. Dentro da cultura ocidental capitalista nada mais coerente do que a redução dos espaços de vivência coletiva para que se multiplique um conjunto de individualidades desconexas. O ato de vivenciar o cinema deixa de ser uma experiência compartilhada coletivamente – gargalhadas engraçadas, choros escandalosos, vaias, pipoca na tela – para se tornar um momento solitário e pouco relevante no cotidiano das pessoas. Você assiste um super filme com aquela sensação de Sessão da Tarde.

  1. Os cinemas no shopping

Uma outra grande característica desse cinema-mercado, sobretudo aqui no Brasil, é o seu gerenciamento cada vez

Cinemateca Capitólio reabriu suas portas este ano. O histórico prédio foi sucesso na época dos cinemas de rua da capital da década de 20. Após fechar as portas, em 1994, começou a ser reformado em 2004 e teve sua reabertura adiada oito vezes. Dez anos depois, retoma as atividades com uma programação especial, que exibirá clássicos de Fellini, Luchino Visconti e Godard. Foto: Betina Carcuchinski.
A Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, reabriu suas portas este ano. O histórico prédio foi sucesso na época dos cinemas de rua da capital da década de 20. Após fechar as portas, em 1994, começou a ser reformado em 2004 e teve sua reabertura adiada oito vezes. Dez anos depois, retoma as atividades com uma programação especial, que exibirá clássicos de Fellini, Luchino Visconti e Godard. Foto: Betina Carcuchinski.

maior por meio de grandes redes especializadas de exibição, frequentemente localizadas em shoppings-centers. Os filmes que assistimos hoje nos cinemas, no final das contas, não são escolhidos com base em critérios de conteúdo ou qualidade. São, na realidade, fruto de uma mediação empresarial que toma por base o critério da lucratividade das bilheterias.

E não é apenas de bilheterias que vivem os complexos multiplex. Cada vez mais ampliando seus horizontes no Brasil, as redes contam com todo um aparato à disposição do público, como ambiente climatizado, cadeiras ergométricas, modernas técnicas de projeção e muita pipoca e refrigerante. Hoje já se fala até em “cinema gourmet”, com poltronas que quase viram camas, com mesa, abajur, fast food, pizza e comida japonesa à disposição da clientela. Não é por acaso que a Cinemark, rede norte-americana que detém a maior fatia do mercado brasileiro, no segundo trimestre deste ano, já declarou a receita de US$ 649,6 milhões, apresentando crescimento de quase 5% em relação ao mesmo período do ano anterior, contando com um total de 5.195 salas de exibição ao redor do mundo.

Ainda mais recentemente, a nova onda no Brasil é a exibição de jogos de futebol na tela do cinema, em substituição aos filmes. Por meio de uma parceria entre o canal esportivo ESPN e a empresa Cinelive, que transmite conteúdo digital via satélite, cerca de 20 mil expectadores nas 130 salas espalhadas em 54 cidades assistiram à UEFA Champions League sentadinhos nas poltronas do cinema. Se o conteúdo e criatividade do filme eram pouco relevantes antes, agora o próprio filme em si deixa de ser a base do cinema-mercado.

CineOLARIA
Foto: CineOLARIA

Dentro desse esquema, a lógica do mercado dita não somente o que nós vamos poder assistir coletivamente, mas também onde o cinema vai se localizar. Se de um lado os grandes conglomerados só nos fornecem a opção de assistir aos filmes de maior lucratividade nas bilheterias, desconsiderando-se conteúdo e criatividade, no mesmo sentido, os prédios históricos que deram vida aos antigos cinemas de rua – que praticamente inexistem hoje – dão lugar a academias, igrejas evangélicas, lojas de atacado, bancos etc., restando-nos apenas a opção dos complexos nos shoppings.

Silvio Tendler, um dos cineastas mais comprometidos com o cinema brasileiro, em entrevista à Carta Maior, afirmou que “Tudo virou mercadoria, produto. Cinema político em cinema de shopping? Não tem mais sala de rua para passar meus filmes. Não se discute a importância artística e cultural dos filmes. Discute-se se dão ou não grana”.

É nesse sentido que algumas iniciativas estão sendo tomadas para retomar antigos cinemas de rua, ou para tentar reduzir a quantidade de cinemas concentradas nos shoppings. Mas é difícil brigar com o mercado. Na medida em que o tempo passa, o cinema vai perdendo seu caráter de experiência coletiva e o parâmetro de qualidade para avaliar os filmes é a lucratividade.  E é assim que, aparentemente, cada vez mais o que menos interessa nos cinemas-mercado-shopping-center é o gosto pela arte na tela.

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clarissa-alves

Clarissa é professora e doutoranda na área de direitos humanos e desenvolvimento. Pesquisa feminismo, migrações e relações de trabalho. Se calhar, está disposta a largar a academia e viver de sua arte.

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3 comentários

  1. Oi pessoal
    Esse site é mesmo surpreendente, queria dar os parabéns pelo trabalho de vocês.
    Sempre é bom obter novos conhecimentos, obrigado 😉

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