Veias abertas do Brasil

Resenha do filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert.  

Sinopse 

Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Val (Regina Casé) é uma pernambucana que há cerca de uma década se mudou para São Paulo para trabalhar como empregada doméstica numa casa de classe média alta, onde também mora num quartinho com janela para a lavanderia. A relação com os patrões é aparentemente muito harmoniosa. Val, que lava, passa, cozinha, também foi desde o começo babá do filho dos patrões, Fabinho (Michel Joelsas), com quem tem uma relação de afeto próxima e maternal, situação que deixa “dona” Bárbara (Karine Teles), sua patroa, um tanto enciumada. Parte do salário de Val é enviada todo mês para a sua filha, Jéssica (Camila Márdila), que deixou no Nordeste.

Depois de anos sem ver a filha, nos quais os três últimos ficou sem qualquer contato, Jéssica finalmente telefona para a mãe, contando que fará vestibular em São Paulo e precisará de hospedagem para os dias que antecedem a prova. Sem saber que Val morava no trabalho, Jéssica é pega de surpresa quando desembarca e descobre que vai ter de dividir um quartinho com a mãe, na casa dos patrões. A sua chegada, que era esperada e aceita pelos donos da casa, no entanto, em muito pouco tempo começa a virar um incômodo. Jéssica não é o que se esperava de uma filha de empregada. Culta e com a postura altiva, ela não corresponde ao imaginário de alguém de sua origem e condição social. Desse estranhamento, conflitos passivo-agressivos passam a evidenciar a falsa harmonia de classes em nosso país.

Li algumas críticas sobre o filme e, em alguns comentários a respeito, muitas pessoas se incomodaram com a expressão “luta de classes” pronunciada por alguns especialistas que resumiam um pouco a história. É como se fosse um Voldemort, uma coisa ruim, um palavrão que não pudesse ser pronunciado.

O filme incomoda muito. É um choque de realidade que expõe a hipocrisia da cordialidade brasileira, do harmonioso convívio entre classes e entre patrão e empregado, algo que só se sustenta com a subserviência alienada de uma das partes. E o pior, não exagera um centímetro. As reações que Jéssica provoca no filme são tão absurdamente reais e perfeitamente plausíveis, que as pessoas na sala de cinema se encolhiam nas cadeiras, davam risadas constrangidas, como se aquilo tudo lhe fosse muito familiar.

O filme em geral tem recebido muitos elogios, mas em algumas críticas internacionais, que podem ser acessadas através do IMDB, alguns críticos e espectadores estrangeiros parecem ter considerado aquelas situações um tanto exageradas. Esse é o problema de alguém falar sobre uma realidade a qual ela não conhece: mil bobagens podem ser ditas. Acho difícil que aqui se tenha essa leitura. Tive a oportunidade de ler alguns comentários de brasileiros que assistiram ao filme no exterior, e eles se disseram muito envergonhados em ter que esclarecer aos amigos gringos que, sim, essa é uma realidade que existe no Brasil, sem tirar nem pôr – a contratação de serviços domésticos por quase toda a população de classe média, empregadas domésticas morando em quartinhos no fundo das casas, disponíveis 24h, as relações de poder, a expectativa dos patrões pela total subserviência das contratadas. Até a própria Dona Bárbara, interpretada por Keles – também ótima no filme –, que poderia ser acusada de se assemelhar a uma megera de novela, se você fizer uma pausa para refletir sobre as ações da personagem, chegaria à inevitável conclusão: “é, isso perfeitamente poderia ter acontecido”.

Porém, o filme não só incomoda, ele comove e encanta profundamente. A personagem de Regina Casé é de uma doçura e de uma delicadeza raras. Você cria um afeto enorme por ela e, por isso, é impossível não se emocionar. E não é porque o filme força um dramalhão, é porque você identifica nela milhares mulheres brasileiras, batalhadoras, dedicadas, gentis, mas que infelizmente por essa razão podem facilmente cair numa situação de exploração. Camila Márdila, brasiliense que interpreta sua filha, também tem uma interpretação espetacular. As duas ganharam juntas o prêmio de melhor atriz no festival de Sundance, nos Estados Unidos. A categoria de melhor atriz nem sequer existia no festival, mas resolveram prestigiá-las devido a genialidade das interpretações. Por falar nisso, para quem conhece bem o sotaque nordestino, vai ficar bastante surpreso com o sotaque pernambucano perfeito, vindo de uma carioca e de uma brasiliense. Felizmente não fazem mais dessas caricaturas que incomodavam tanto a gente aqui de cima – “ó-xente, mai godi!”.

Por último, e não menos importante, como Pablo Villaça ressaltou, o filme foi dirigido, roteirizado, montado, fotografado, co-produzido e escalado por mulheres, o que é uma verdadeira provocação para os machistas de plantão. Nem vou comentar do episódio do debate na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, porque fico morta de vergonha alheia.

A direção e o roteiro de Anna Muylaert são primorosos. Cada detalhezinho do filme tem uma razão de ser. O roteiro é bem redondinho, tudo se concatena perfeitamente. As situações criadas demonstram a sensibilidade e a perspicácia da diretora e roteirista em ler e interpretar o nosso país, que esperneiem como quiserem, se transformou consideravelmente no nível social e econômico nos últimos 15 anos. O filme é sobre isso: sobre um Brasil do passado e um Brasil do presente, com filhos de empregada se preparando para entrar na faculdade, que se vestem bem e sacam de arte e literatura.

Eu não sei que defeitos eu poderia apontar, porque não sou crítica de cinema. Eu só precisava falar desse filme, por qual estou cega de paixão. Tenho certeza que não vai ser uma experiência única, ele já é um verdadeiro clássico e, algumas de suas cenas, sem dúvida, serão lembradas indefinidamente na história do cinema brasileiro.

Ps: Optei por não começar descrevendo algumas das principais cenas, porque muitas delas advém de partes do filme que são apresentadas despretensiosamente e que viram algo maior no final. Acho que tiraria a surpresa e a satisfação de quem está assistindo pela primeira vez.

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mariana-nobrega

Mariana é doutoranda em ciências criminais e mestra em ciências jurídicas. Pesquisa sobre direitos humanos, teorias feministas e criminologia. Também é servidora pública e mais uma advogada de araque neste país de direitoloides.

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