Jogando o ódio no ventilador

Atualmente, tem sido comum o linchamento virtual servir de arma para movimentos sociais ou para pessoas vítimas de agressões ou de atitudes moralmente reprováveis. O caso mais recente se refere ao rapaz de uma banda gaúcha cultuada no meio jovem e hipster. A ex-companheira de um dos integrantes escancarou publicamente nas redes sociais o que ela considerou uma incoerência do ex-companheiro, que por meio do seu trabalho faria músicas com letras feministas, mas que, na realidade, na vida pessoal, teria cometido uma série de atos machistas enquanto casado.

A repercussão foi tremenda, causando inclusive a paralisação das atividades da banda, que tinha uma série de shows de lançamento do novo álbum marcada. Na página do grupo no Facebook e no perfil pessoal do integrante denunciado, é possível encontrar uma enorme quantidade de mensagens de ódio, pedindo inclusive a morte do rapaz. Trata-se da manifestação do antigo fenômeno do linchamento, mas com uma nova roupagem.

O Brasil é um dos países que mais lincham no mundo, com quatro linchamentos e tentativas de linchamento por dia. O linchamento é uma manifestação de violência coletiva de um grupo contra alguém, em resposta a uma conduta condenável socialmente praticada por este, como forma de puni-lo por romper a ordem estabelecida. Os linchadores são sujeitos coletivos que se ocultam na multidão, que muitas vezes individualmente não têm características violentas, mas têm o ânimo exaltado estimulado pela soma do ódio dos inúmeros participantes, que dão vazão a uma fúria muitas vezes desproporcional aos fatores que a desencadearam. Os linchadores supostamente pretendem restaurar os valores daquela sociedade por meio de uma resposta violenta ao que também se considera uma violência, sendo que supostamente esse ato seria legítimo e altruístico, enquanto a violência praticada pelo linchado ou linchada não o é.

Esses atos podem se dar por meio de perseguição, apedrejamento, espancamento, mutilação do linchado e pelo assassinato, muitas vezes com requintes de crueldade, como a queima da pessoa viva. O linchamento é uma forma de julgamento que impede o contraditório e a ampla defesa do alvo do ódio coletivo, resgatando os traços do período pré-moderno, em que não há possibilidade do réu se defender e ser julgado por um juiz que se pretende imparcial e racional. Assim, não há apelo, é um julgamento moral e definitivo, porque aniquila o seu alvo de ódio. Este é excluído e desumanizado, pois é considerado incompatível com os valores daquela sociedade. Isso normalmente acontece quando há uma descrença generalizada nas instituições, que supostamente não poderiam dar conta do caso e, então, as pessoas tomariam medidas com as próprias mãos.

Os linchamentos virtuais, apesar de terem elementos semelhantes ao descrito, não são mera repetição do antigo fenômeno do linchamento. Eles possuem as especificidades do espaço virtual, tais como o deslocamento espaço-tempo, a comunicação com mensagens multimodais e a possibilidade de mobilização de uma grande rede de relacionamento. Todos esses fatores modificam sobremaneira a dimensão do evento, a dimensão das mensagens a ele relacionadas e a dimensão das punições.

Desde que o fenômeno da Internet, das redes sociais e da evolução dos dispositivos de difusão de vídeos e imagens se popularizou, a exposição da vida pessoal, por meio de registros fotográficos, de vídeo ou pela divulgação de opiniões, seja voluntariamente ou involuntariamente, ganhou proporções de controle praticamente impossíveis, sobretudo se essa exposição cai no agrado ou desagrado popular.

Atitudes ou comentários equivocados, preconceituosos, desagradáveis, que antes poderiam se restringir a uma mera conversa de bar, a uma discussão num círculo de pessoas fechado, se capturadas e registradas por algum dispositivo, podem cair na rede, e expor ao público aquela atitude ou comentário de tal forma que ganha um peso que jamais antes poderia ter tido em situações corriqueiras. É a intimidade do indivíduo comum espetacularizada, numa visibilidade expandida que subverte os limites entre público e privado, e submete o indivíduo ao olhar do outro, acabando por lhe escapar o controle.

Quanto ao caso inicialmente mencionado – o caso do integrante da banda gaúcha –, recentemente a moça que denunciou o ex-companheiro músico, escreve um novo comentário se mostrando surpresa com a repercussão dos fatos e esclarece que muitos dos seus relatos foram superdimensionados, fugindo ao seu controle e à motivação inicial que a fez realizar a denúncia, que o seu objetivo não era estragar a vida do ex-companheiro e que, mesmo ela, também tem sido prejudicada com a exposição que se colocou.

Esse efeito já foi estudado por Karen Macedo, na dissertação intitulada Linchamentos virtuais: paradoxos nas relações sociais contemporâneas, e é importante esclarecer que para quem acha que essa é a melhor forma de resolução de conflitos, os ganhos para a pessoa denunciante são questionáveis. Um desabafo online que pretende ser uma forma de libertação dos danos sofridos pela vítima, na verdade constitui uma falsa libertação. Assim como Foucault observou em a “História da Sexualidade”, deixar que as pessoas falem livremente sobre sua vida privada e suas angústias nem sempre representa uma forma de libertação, mas esse relato serve de material para que terceiros possam intervir de forma mais invasiva e efetiva na vida dessa pessoa. Na verdade, é uma forma de se colocar sob o controle público, numa “liberdade vigiada”. A privacidade se torna, então, algo de domínio público, submetendo as manifestações de pensamento e comportamento ao crivo da justiça popular. Assim, não somente o denunciado como o denunciante se coloca sob o julgamento do tribunal da internet, que não costuma ser condescendente quando questões polêmicas vêm à tona. A denúncia, portanto, foge ao controle da pessoa denunciante e a fúria coletiva toma as rédeas da questão.

Mesmo que a denúncia seja verdadeira e sirva para fins políticos, o custo dela é altíssimo. E se for mentirosa, nem se fala. A pena infligida contra o denunciado, pode ser muito mais alta e severa do que o próprio ato cometido. Conforme casos relatados na dissertação de Karen Macedo, casos de linchamento virtual levam à destruição da vida social do alvo das denúncias, levando a situações como depressão, perda do emprego, até a suicídios e assassinatos.  Ela abre portas para que qualquer pessoa que se sinta injustiçada se ache no direito de fazer uma denúncia pública online, sendo esta verdadeira ou não, massacrando qualquer possibilidade de defesa do denunciado, e a colocando sob o escárnio público com danos irreversíveis.

A captura de apenas um momento de determinada pessoa, sem todos os aspectos de sua vida que a tornam complexa, colocam-na como sendo apenas aquele momento retido, negando todos os outros aspectos de sua vida e sua própria humanidade. A reação violenta daqueles que se indignam com aquele deslize acaba tendo poucos limites no âmbito online, já que dentro da rede, é pouco provável que se tenha empatia por aquele cuja reação e sofrimento não se pode ver.

O linchador age e reage aceleradamente, quase que por reflexo e repetição. Ele opta por julgar e compartilhar, no lugar de ler, refletir, avaliar, argumentar. Não há mensuração de riscos e consequências ou reflexão e elaboração do próprio ódio que se diz sentir.

É importante esclarecer que aqui não se pensa que denúncias de abusos e violências devem passar impunes. Pessoas públicas agindo em desconformidade com sua atuação de pessoa pública devem ser denunciadas, seja qual for o meio. Porém, quando a questão se refere a problemas íntimos, este texto tenta refletir se a difusão online do problema é a melhor maneira. Violências e abusos podem e devem ser denunciados dentro do âmbito legítimo, que no caso é o direito, com a possibilidade de contraditório e ampla defesa, e questões morais podem continuar a ser colocadas em discussão no âmbito das pessoas que circundam aquela situação, como parentes e amigos. Levar a público questões pessoais é abdicar do controle sobre a situação, é deixar que terceiros intervenham de maneira indesejada e irresponsável sobre uma dor que não é deles, assumindo as rédeas sobre algo que não conhece a fundo.

 Tudo isso é o resultado de uma revolução social que ainda não teve suas repercussões bem mensuradas, refletidas e lapidadas. São então questões que necessitam da construção de uma nova ética, adequada às novas questões postas, que este texto se propõe a ajudar a construir.

 

Fontes:

BRUNO, Fernanda. Quem está olhando? Variações do público e do privado em weblogs, fotologs e reality shows. Contemporânea, v. 3, n. 2, p. 53-70, jul./dez. 2005.

 

______; PEDRO, Rosa. Entre aparecer e ser: tecnologia, espetáculo e subjetividade contemporânea. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 2, n. 11, p. 1-16, jul./dez. 2004.

 

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade I: A vontade de saber (1976). Rio de Janeiro: Graal, 1999.

 

MACEDO, Karen Tank Mercuri. Linchamentos virtuais: paradoxos nas relações sociais contemporâneas. 132f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) – Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas. Limeira/SP, 2016.

 

MARTINS, José de Souza. Linchamentos: a justiça popular no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

 

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mariana-nobrega

Mariana é doutoranda em ciências criminais e mestra em ciências jurídicas. Pesquisa sobre direitos humanos, teorias feministas e criminologia. Também é servidora pública e mais uma advogada de araque neste país de direitoloides.

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