Desmilitarização para quem precisa de polícia

São Paulo - A manifestação contra o aumento das tarifas do transporte público coletivo de São Paulo foi dispersada pela Polícia Militar (PM) mesmo antes de começar a se deslocar em passeata (Rovena Rosa/Agência Brasil)
São Paulo – A manifestação contra o aumento das tarifas do transporte público coletivo de São Paulo foi dispersada pela Polícia Militar (PM) mesmo antes de começar a se deslocar em passeata (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Não é preciso um grande esforço de memória para lembrarmos de pelo menos uma dúzia de episódios violentos protagonizados pelas polícias militares nos últimos anos. Entre os mais recentes, vimos há poucas semanas a recorrência da repressão policial truculenta aos protestos realizados em São Paulo contra o aumento na tarifa de transporte público municipal, a qual resultou em dezenas de manifestantes feridos por balas de borracha, estilhaços de bombas e cassetetes. Essa fórmula da reação desmedida à atuação dos manifestantes é basicamente a mesma que vem sendo adotada pelo menos desde as Jornadas de Junho de 2013, as quais tributam parte de sua grande dimensão justamente à solidariedade gerada entre os que repudiavam a violência da polícia contra os protestos.

Os abusos cometidos por policiais, contudo, não se limitam à repressão aos manifestantes. A mais concreta expressão da violência da polícia está, na verdade, nas execuções extrajudiciais, as quais, em 2015, renderam ao Brasil o primeiro lugar no ranking das polícias que mais matam em todo o mundo (conforme a Anistia Internacional).

Segundo o Anuário de Segurança Pública (ASP) de 2015, as mortes causadas por policiais aumentaram 37% entre 2013 e 2014, passando de 2.203 para 3.022 casos. Já a violência letal praticada por não policiais, embora também tenha aumentado, sofreu um acréscimo bem menor: segundo a mesma fonte, os crimes violentos letais intencionais alcançaram a cifra de 54.193 em 2013, chegando a 56.123 em 2014, o que corresponde a um aumento de 2,8% entre esses anos. Por outro lado, o número de policiais mortos (em serviço ou fora dele) revela que, além de algozes, os agentes de segurança também são vítimas da violência letal: 398 policiais foram assassinados em 2014, número um pouco menor do que os 408 mortos em 2013.

Cotejando-se esses dados, vê-se que os assassinatos decorrentes de intervenção policial têm crescido não apenas de forma vertiginosa, mas também sem guardar qualquer proporcionalidade com o incremento dos assassinatos em geral ou, ainda, com o ligeiro decréscimo no número de policiais mortos. Por isso, o recrudescimento da letalidade na ação da polícia não pode ser visto como uma pretensa resposta dos “agentes de segurança” à “criminalidade desenfreada”: ele reflete, na verdade, a imperiosa necessidade de se reformular as instituições encarregadas da segurança pública no país.

No Brasil, a Constituição Federal define que a segurança pública será exercida através de cinco instituições policiais:  polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis e polícias militares (e corpos de bombeiros militares). Em linhas gerais, as funções de policiamento ostensivo (ronda) e de preservação da ordem (realização de abordagens e encaminhamentos às delegacias) ficam a cargo da polícia militar (PM), enquanto a polícia civil é responsável pelas investigações dos crimes. Mais do que pelas diferentes atribuições, essas duas polícias também se distinguem em relação à sua formação histórica, títulos de hierarquia, submissão, cultura organizacional e missão. Além disso, a polícia militar é vinculada ao Exército, o que se dá tanto porque ela constitui uma reserva a essa Força quanto por sua subordinação à Inspetoria Geral das Polícias Militares, um órgão do Exército criado em 1967 – em plena ditadura militar.

Rio de Janeiro - A ONG Rio da Paz faz ato público em memória dos PMs mortos em 2015. Fotos de todos os policiais que sofreram morte violenta foram espalhadas na areia de Copacabana (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Rio de Janeiro – A ONG Rio da Paz faz ato público em memória dos PMs mortos em 2015. Fotos de todos os policiais que sofreram morte violenta foram espalhadas na areia de Copacabana (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A polícia militar, como pode parecer redundante afirmar, é guiada por uma lógica militar, de guerra, segundo a qual a missão da instituição é combater o inimigo. Essa filosofia guerreira é a mesma que norteia o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, a quem a Constituição incumbiu a tarefa de defesa da soberania nacional contra investidas externas. No entanto, a cultura de eliminação do inimigo, por mais que seja tida como apropriada para as Forças Armadas brasileiras (como ocorre em qualquer lugar do mundo), mostra-se completamente inadequada para guiar a atuação da PM, já que, diferentemente daquelas, a polícia militar deve ter uma missão civil e democrática, que é a proteção aos direitos dos cidadãos, impedindo violações à lei.

Luiz Eduardo Soares (antropólogo, professor da UERJ e escritor famoso por ter sido coautor dos dois volumes de “A Elite da Tropa”), um dos maiores estudiosos da segurança pública do país, aponta que “se a concepção policial não fosse a guerra, teríamos mais chances“. Para ele, há um “cinismo que impera lá na base da relação do Estado com a sociedade, que se dá pelo policial uniformizado na esquina. É a face mais tangível do Estado para a grande massa da população e, em geral, tem um comportamento abusivo, violador, racista, preconceituoso, brutal.”

A esse problema da cultura organizacional da polícia militar, soma-se um outro, tão grave quanto: a própria concepção de seu trabalho. No Brasil, o índice de elucidação de crimes é baixíssimo (no máximo 8% dos casos de homicídio são solucionados pela polícia), o que deixa clara a baixa efetividade da investigação policial . Assim, a partir do momento em que os crimes não são solucionados pela polícia civil, é somente com a prisão em flagrante que as investigações policiais têm sido iniciadas no país. Em outras palavras: se a polícia civil não consegue investigar bem para, depois, prender os suspeitos, a polícia militar tem ido às ruas em busca de resultados (leia-se: pessoas a serem presas) e, nessa incursão, é óbvio que ela não alcança nada mais do que o “varejo” dos crimes, limitando-se na maioria das vezes a prender suspeitos de pequenos crimes patrimoniais e pessoas com drogas e/ou armas (as quais lotam os presídios em todos os cantos do Brasil). Aqui, mesmo sem gastar muita energia cognitiva é possível se dar conta de que nenhum grande traficante de drogas/armas e nenhum contumaz praticante da lavagem de capitais jamais será interceptado por ações policiais de rua.

Ora, se a produtividade da PM é medida basicamente pela quantidade de pessoas pegas em flagrante com drogas e armas, pode-se afirmar, com Luiz Eduardo Soares, que a polícia militar se vale de um filtro seletivo para eleger o perfil do sujeito que será alvo das abordagens, e que, possivelmente, estará em posse de drogas e armas. Boa parte do arcabouço da construção desse perfil é a política proibicionista de drogas (de que o Pandora Livre já falou aqui): a polícia militar sai às ruas para “caçar” e o alvo dessa “caça” coincide com aqueles que são criminalizados pela lei de drogas. É a lei de drogas, ao fim e ao cabo, que dialoga e interage com a rua e com suas dinâmicas.

Uma tentativa de encarar de frente os problemas da política de segurança pública no Brasil, mudando inclusive a configuração institucional das polícias, é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51/2013, apresentada pelo Senador Lindbergh Farias (PT/RJ). Essa proposta  sucede duas outras, com objetivos em parte semelhantes ao seu: a PEC430/2009 (Dep. Celso Russomano PP/SP) e a 102/2011 (Sen. Blairo Maggi PR/MT).

A PEC 51/2013 pretende modificar totalmente a falida organização da segurança  pública e o modelo de polícia existentes no país. Entre suas principais frentes, está a desmilitarização das polícias. Com a desmilitarização, as PMs passariam a se organizar a partir de uma cultura civil democrática, perdendo também sua vinculação ao Exército. Assim, o treinamento de todos os policiais, inclusive dos que viessem a ser encarregados do policiamento ostensivo (rondas), deixaria de tomar como base a ideia de “guerra contra o inimigo” e teria como pedra angular o respeito aos direitos dos cidadãos.

A desmilitarização das PMs foi uma das recomendações constantes no relatório apresentado à Presidência da República, em dezembro de 2014, pela Comissão Nacional da Verdade. Segundo a Comissão, por mais que a estrutura militar das PMs e sua vinculação às Forças Armadas sejam herança da ditadura,  o Estado democrático inaugurado com a Constituição de 1988  não alterou essa configuração institucional. Por isso, o documento recomendou  a alteração do texto constitucional para desmilitarizar as polícias.

A prescrição da Comissão Nacional da Verdade seguiu a mesma linha do que já havia sido recomendado ao Brasil pela Organização das Nações Unidas. Em 2012, a ONU exigiu do país mais empenho no combate à atividade dos “esquadrões da morte”, responsáveis pelas execuções extrajudiciais no País, e, de forma bastante clara, a Dinamarca propôs que o Brasil extinguisse a polícia militar. Mais recentemente, a relatora especial da ONU sobre Questões das Minorias, Rita Izsáck, na visita que fez ao Brasil em setembro de 2015, também endossou o pedido pelo fim do PM, ressaltando que  combater as mortes praticadas por agentes do Estado  seria uma medida de promoção da  igualdade social e defesa das minorias.

A ideia da desmilitarização, ao contrário do que possa parecer, conta com o apoio da maioria dos policiais. A pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública”, realizada em 2014 pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ouviu  21.101 policiais. Segundo ela, a maioria dos policiais (27%) acredita o modelo mais adequado à realidade brasileira seria a “criação  de  uma  nova  polícia,  de  ciclo  completo,  de  caráter  civil,  com  hierarquia  e  organizada  em  carreira  única.”, seguida por um outro expressivo contingente (21,86%) que entende necessária a unificação das PMs com as polícias civis, formando novas polícias estaduais integras de ciclo completo. A pesquisa também apontou que apenas 14,22% dos entrevistados seriam a favor da manutenção do atual modelo de polícias estaduais.

 Além da desmilitarização, a PEC 51/2013 pretende estabelecer grandes alterações no sistema de carreiras policiais, ordenando-o em uma carreira única. Com isso, ao invés de haver formas diferentes de ingresso conforme o cargo, o policial entraria na corporação com a possibilidade de ascensão funcional até o vértice da carreira. Com isso, a porta de entrada na instituição seria sempre como policiais da base (agentes ou praças) e, a partir do desempenho do sujeito em avaliações realizadas durante o exercício profissional, ele poderia chegar a cargos superiores, como delegado ou coronel, por exemplo.

Um outro alvo da PEC 51/2013 é a instituição de um ciclo completo do trabalho policial. Atualmente, um grande problema na segurança pública é a divisão de atribuições entre as polícias, com algumas sendo incumbidas das atividades de investigação (a exemplo das polícias civis dos estados) e outras do trabalho preventivo/ostensivo (como as polícias militares). Esse fatiamento do trabalho traz uma série de prejuízos, pois, no modelo que se tem hoje, acontece de, por exemplo, o policial efetuar uma prisão em flagrante durante uma prisão e, necessariamente, ter de se deslocar até uma delegacia (de outra polícia) para dar seguimento à ocorrência e à investigação. Quem efetua as prisões e faz as rondas não pode realizar atos investigatórios, e vice-versa. Assim, a PEC propõe que todo órgão policial realize o ciclo completo de trabalho, o que inclui o policiamento ostensivo, preventivo e investigativo.

São vários, portanto, os caminhos alternativos sinalizados pela PEC 51/2013 e pelas outras propostas de alteração da atual configuração da segurança pública no país. Nenhuma dessas vias conta com a opinião favorável da unanimidade dos que integram as forças policiais, dos estudiosos do tema ou da sociedade civil. Apesar disso, essas divergências – que são mesmo inerentes a todo assunto lançado em uma arena democrática – não podem desconsiderar que, no debate sobre segurança pública, a expressão definitiva é a dos cadáveres, que falam a partir do seu mutismo.

Diante de todas as palavras que possam ser ditas, como nos lembra Eugenio Raúl Zaffaroni, “por mais complexas ou simplistas que possam ser e quase sempre enredadas em discussões intermináveis -, parece uma grosseria -e não nos incomoda que efetivamente o seja – afirmar que a única realidade são os mortos”. Muito têm a nos dizer (a nós, que aqui estamos) as 56.123 pessoas assassinadas no país em 2014. Muito nos falam os 398 os policiais mortos. Muito temos que ouvir dos 3.022 executados pela polícia.

Para acompanhar nossas publicações, curta a página do Pandora Livre no Facebook.

diana-andrade

Diana é defensora pública e mestre em desenvolvimento regional. Escrever no Pandora Livre é parte do seu plano de se tornar uma burocrata descolada.

Justamente

, , , ,