Sobre ser mulher nos espaços públicos

Foto: Lula Marques/ Agência PT
Foto: Lula Marques/ Agência PT

 

Você pode não gostar da política econômica e social de Dilma, mas você precisa repensar se realmente é constitucional e democrático esse processo de impeachment. Quanto o fato de ela ser mulher e não se comportar conforme o papel de submissão que o patriarcado e nossas instituições arraigadamente corruptas impõem são decisivos nesse processo?

Está circulando na internet uma entrevista de Christiane Amanpour feita à presidenta Dilma para a CNN. A entrevistadora faz perguntas duras quanto ao fato de ser ou não golpe um impeachment previsto na constituição e os atos da Presidenta que balizam tal pedido. Para as perguntas relativas ao desempenho de seu cargo, Dilma responde de modo direto até às questões de tom mais acusador sobre o orçamento e sua impopularidade.

Christiane tenta humanizar mais a figura, formula as perguntas em tom pessoal. Neste ponto, a presidenta tangencia as discussões e não imprime nunca qualquer rasgo de sua vida ou situação. Até nas respostas às perguntas diretas sobre se sua condição de mulher interfere no processo ou na questão da tortura que sofreu ela responde na primeira pessoa do plural: nós, como se a ela fosse negada qualquer condição de ser.

Realmente, Dilma não é a estadista empática que Lula é. Ele sempre aproxima o povo de sua subjetividade simples e de sua história pessoal.  Hillary não é uma “boa política” como Clinton, mas não é uma questão apenas delas. Dilma tem razão em utilizar o “nós”: não é uma questão só dela, é do ser mulher.

O tom genérico da Presidenta é um sintoma da armadilha imposta à mulher moderna para assumir espaços públicos, sempre tendo de blindar sua condição, seus sentimentos, imperfeições, sua humanidade. Qualquer rasgo de nossos sentimentos, vida privada e emoções em nossa conduta soam como fraqueza, é melhor evitar!

É como se a esfera do racional não pertencesse a nós. Para exercê-la, devemos nos transfigurar num ser estéril, imune à sujeira da condição humana, da natureza e da sociedade, sem qualquer rasgo de humanidade! Só assim podemos conter minimamente os riscos do ato de agir por conta própria. Tentar, repito, por que os riscos sempre estão ali para nos conter, os mais básicos são os adjetivos. Mesmo seguindo as regras do mundo machista moderno, nenhuma mulher se livrará dos adjetivos: duras, mal amadas, histéricas, intransigentes, fora as diversas palavras e atos de baixo calão que me recuso a reproduzir aqui.

Senadores da Comissão Especial do Impeachment trocam memes sobre Dilma. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
Senadores da Comissão Especial do Impeachment trocam memes sobre Dilma.
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Ao menos aqui, ouso sair da armadilha! A fala de Dilma sobre a condição da mulher me representa muito. Sofro na pele o peso de ser mulher e querer seguir meus princípios e convicções no trabalho e na vida. Eu, como Dilma, Hillary ou como você leitora, sou convidada diuturnamente a fazer parte do jogo: ou você é perfeita em todos os aspectos práticos da vida para poder se guiar na sociedade, ou pode ser humana e ser guiada pelo patriarcado. Ser mulher e tentar guiar a sua vida pela própria consciência exige muita força, saúde mental, resistência e, além de tudo, um esforço desumano de tentar manter sua vida pública e privada imaculada, pois saibam: qualquer desvio mínimo, seja inclusive meramente formal, será utilizado contra você e a aniquilará.

Há pouco tempo, fui extremamente hostilizada em meu trabalho por tentar cumpri-lo conforme a minha consciência e sem me submeter a pressões infundadas. Não foi a primeira vez, mas tive que escutar dos meus pares a seguinte constatação: se você quiser ser rígida (leia- se: não ceder a pressões dos alunos), você precisa ter seus movimentos milimetricamente calculados, ser excepcional e não falhar jamais. Eles estão certos quanto à análise e ao conselho. Na sociedade em que vivemos, para as mulheres terem direito de se impor, é necessário serem super heroínas.

O mundo já tinha me ensinado essas regras desde pequenininha, antes mesmo desses meus colegas, por isso é que eu sempre fui muito rígida com minha própria conduta, minhas obrigações, prazos e formalidades, mas como toda armadilha é feita para a gente cair, quem se submete às regras dela, uma hora cai. Por mais que meu esforço seja enorme para manter tudo milimetricamente ajustado, mesmo ao som dos adjetivos que me lembram constantemente sobre minha missão (megera, intransigente, durona, inflexível…) eu relaxei na minha condição humana, relaxei, flexibilizei e flexibilizar uma regra por uma questão de empatia (sentimento) com a turma foi o motivo para minha conduta profissional ter sido atacada.

Infelizmente eu e todas as mulheres temos que viver nessa sociedade e os homens, mesmo os que são nossos amigos, familiares, companheiros de vida e profissão, apenas nos darão esse “conselho” impossível como uma sentença de condenação: curve-se ou seja perfeita. Ah, antes que eu esqueça: um daqueles mesmos colegas que me deu o “conselho”, no final, para fechar com chave de ouro as táticas de contenção da emancipação feminina, arrematou como num dispositivo de sentença: o problema de tudo isso é que você é muito antipática. Isso mesmo, eu, Dilma, Hillary, nunca seremos carismáticas.

Dilma Rousseff desceu a rampa do Palácio do Planalto para cumprimentar mulheres que estavam em frente ao Palácio e recebeu flores.
Dilma Rousseff desceu a rampa do Palácio do Planalto para cumprimentar mulheres que estavam em frente ao Palácio e recebeu flores.

Ninguém fará nada por nós senão nós mesmas. Ou desconstruímos o jogo, mudamos a nossa sociedade ou ela nos conformará ou aniquilará. Sejamos as protagonistas da resistência de Dilma, que também é a nossa. Por mim e por todas nós. Fiquem livres para serem humanas e trazer seus relatos nos comentários. Já passou da hora de se rebelar.

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jimenna-rocha

Jimenna Rocha é mestre em Direito Econômico pela UFPB, professora do DCJ da UFPB e acima de tudo mulher.

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