Transição democrática e redução da maioridade penal

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Até meados da década de 1980, as reflexões sobre o autoritarismo e a violência compartilhavam a esperança de que a (re)instauração da democracia representaria o fim das graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil. De acordo com esse pensamento, a ruína da ditadura militar acabaria com a chancela dos altos escalões do governo à prática da tortura e das execuções sumárias, e, com isso, os ataques a direitos fundamentais deixariam de ser uma política de Estado norteada pela ideologia oficial de combate às ameaças comunistas.

De certo modo, alguns episódios indicavam que a expectativa de esfacelamento das estruturas autoritárias parecia se converter em realidade: em 1982, eleições diretas para governadores dos estados e maioria oposicionista na Câmara dos Deputados; em 1985, vitória da oposição na campanha para Presidente e restabelecimento de eleições diretas para o vértice do Executivo federal; em 1986, vitória do PMDB nas eleições gerais; em 1988, promulgação da nova Constituição; em 1989, eleições presidenciais diretas.

No entanto, inaugurados os anos 1990, não demorou muito para que o entusiasmo com a democratização cedesse lugar à frustração decorrente do aumento da criminalidade comum (sobretudo dos homicídios), da sensação de insegurança e, fatalmente, das violações cometidas em nome do combate ao crime. Aqui, Benoni Belli lembra que nos anos de chumbo os criminosos comuns não desfrutaram de sorte melhor do que a dos acusados de crimes políticos, embora a doutrina de segurança nacional se dirigisse apenas à dizimação dos últimos. Apesar disso, como a violência política atingia principalmente as classes média e alta, a violência física praticada contra os pobres era relegada a um plano secundário na luta contra os abusos autoritários, tendendo a ser aceita com mais facilidade.

Nessa quadra da história, a ideia do recrudescimento da repressão penal não foi exclusividade do Brasil. Na verdade, o senso comum visando à criminalização da miséria foi forjado nos Estados Unidos dos anos 1980 e irradiado para várias partes do mundo, dentro de um contexto de atrofia do Estado de bem-estar social e hipertrofia do Estado penal. Ali, institutos de consultoria alimentaram elites políticas e midiáticas com conceitos, princípios e medidas para legitimar a necessidade de reforço do sistema punitivo. Dentre eles, desponta o Manhattan Institute, responsável pela popularização da famosa teoria das janelas quebradas, segundo a qual os pequenos distúrbios cotidianos deveriam ser rigorosamente reprimidos para fazer recuar grandes patologias criminais. No plano político, essa teoria embasou o trabalho policial de William Bratton, chefe da polícia de Nova York, que, com o apoio do prefeito Rudolph Giuliani, buscava restabelecer a “qualidade de vida” dos nova-iorquinos a partir da “Tolerância Zero” com o subproletariado, que suja e ameaça a cidade.

O contexto político dos anos 1990 é fundamental para a compreensão do hiato que se interpôs entre as promessas da Constituição brasileira de 1988 e a negação do efetivo exercício dos direitos fundamentais nela previstos a amplas parcelas da população. Na verdade, as relações entre direitos fundamentais e democracia podem ser analisadas sob várias perspectivas, mas, com Habermas, pode-se dizer que entre esses dois elementos estruturais da vida jurídica e política há um elo de complementaridade, assim que tanto a democracia constitui um requisito para o respeito aos direitos humanos, quanto esses direitos são pré-requisitos para o regime democrático, viabilizando ao indivíduo a participação política efetiva. De todo modo, o certo é que o fim da ditadura e a mudança operada no plano constitucional não foram capazes de eliminar o paradoxo inerente à sociedade brasileira (e a várias outras sociedades contemporâneas), na qual a democratização das estruturas políticas conviveu – sem maiores atritos – com a permanência da violência fundante de uma sociedade hierárquica e desigual, violência essa que se concentrou contra grupos sociais determinados.

No extenso rol de direitos e garantias fundamentais previstos na Carta de 1988, o art. 228 representa uma novidade na história das constituições brasileiras. Esse artigo estabelece que são penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, os quais deverão se submeter a legislação especial. Por mais que se trate de uma garantia individual fundamental, a inimputabilidade cronológica não está topologicamente situada no artigo 5.º da Constituição, locus que concentra a maioria de salvaguardas do mesmo tipo. Porém, a localização dessa garantia em capítulo específico decorreu da técnica legislativa, pois os grupos de defesa da criança e do adolescente conseguiram inserir no texto constitucional os princípios da doutrina da proteção integral previstos nas normas das Nações Unidas e, com isso, fizeram com que o Brasil alcançasse uma posição destacada no cenário internacional, onde a maioria dos países trata da inimputabilidade penal apenas no plano infraconstitucional (através das leis).

Dois anos após a promulgação da Constituição, a proteção à infância e à adolescências ainda seria reforçada pela Lei n.º 8.069, conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente, e da ratificação, entre outros documentos internacionais, da Convenção sobre os Direitos da Criança, na qual se prevê que nenhuma pessoa menor de 18 anos pode ser julgada como adulto. O incipiente avanço no âmbito normativo, contudo, não foi capaz de conter os ânimos repressores do umbral dos anos 1990.

Em 1993, o deputado Benedito Domingos (PP/DF) apresentou uma proposta de emenda constitucional para alterar a redação do art. 228 e admitir a responsabilização criminal do adolescente maior de 16 anos. Para grande parte da comunidade jurídica, no entanto, a PEC, registrada sob o n.º 171, desde logo esbarra na vedação do art. 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição, dispositivo que estatui as chamadas cláusulas pétreas, ou seja, as matérias que só podem ser modificadas por uma nova Constituinte. Ao estabelecer esse núcleo blindado contra reformas, a Constituição de 1988 firmou que “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.

A despeito desse argumento que fulmina a própria possibilidade de o Congresso deliberar sobre a redução da maioridade penal, a justificação da proposta também não resiste a uma análise minimamente ponderada. Com efeito, na justificação da PEC, é afirmado que “se há algum tempo atrás se entendia que a capacidade de discernimento tomava vulto a partir dos 18 anos, hoje […] o mesmo ocorre quando nos deparamos com os adolescentes com mais de 16.” Nesse trecho, já se vê que o fato de o poder constituinte originário ter decidido sobre o tema apenas cinco anos antes de sua proposta é solenemente ignorado, dando a entender que, nesse curto período, a sociedade teria mudado tanto que a alteração constitucional teria passado a ser necessária.

Ainda na justificação, o parlamentar sustenta que “O noticiário da imprensa diariamente publica que a maioria dos crimes de assalto, de roubo, de estupro, de assassinato e de latrocínio são praticados por menores de dezoito anos, quase sempre aliciados por adultos.” Aqui, as informações apresentadas pelo autor da PEC não se sustentam em nenhum estudo empírico ou constatação estatística, embora seja certo que os estudiosos da violência (a exemplo de Sérgio Adorno) apontam o crescimento da criminalidade juvenil na época. Por outro lado, se o deputado quisesse se reportar à violência urbana contemporânea à PEC, deveria ele ter mencionado o ocorrido no Rio de Janeiro, em julho de 1993, praticamente na véspera da sua proposta. Nesse episódio, que ficou conhecido como a Chacina da Candelária, policiais militares assassinaram oito jovens (sendo seis menores de 18 anos) e feriram várias crianças e adolescentes que estavam dormindo no exterior de uma igreja. De todo modo, os dados recentemente divulgados pelo IPEA indicam justamente o contrário da justificação da PEC: dos 15 mil adolescentes que cumprem medidas privativas de liberdade apenas 12,7% cometeram crimes graves como homicídio, latrocínio, lesão corporal e estupro.

Indo além em suas proposições, o parlamentar se vale de argumentos bíblicos: “A uma certa altura, no Velho Testamento, o profeta Ezequiel nos dá a perfeita dimensão do que seja a responsabilidade pessoal. Não se cogita sequer da idade: ‘A alma que pecar, esta morrerá’ (Ez. 18) […] Ainda referindo-nos a informações bíblicas, Davi, jovem, modesto pastor de ovelhas, acusa um potencial admirável com seu estro de poeta e cantor dedilhando a harpa mas, ao mesmo tempo, responsável suficientemente para atacar o pastor de seu rebanho”. Nesse trecho, novamente se vê a absoluta falta de respaldo empírico para a alteração constitucional, o que obrigou o parlamentar a se valer de citações religiosas para tentar encorpar a esqualidez de todo a sua linha argumentativa.

Passados mais de vinte anos desde a apresentação da proposta, a Câmara dos Deputados, na madrugada do dia 1.º de julho de 2015, rejeitou o texto da comissão especial para a PEC 171/1993, mantendo a maioridade penal aos 18 anos. Porém, sob o império de Eduardo Cunha (PMDB/RJ), logo no dia seguinte, os deputados resolveram encampar a manobra do presidente da Casa e redecidiram a questão, dessa vez aprovando a redução da maioridade penal nos casos de crimes hediondos (estupro, sequestro, latrocínio, homicídio qualificado e outros), homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. A previsão dos crimes hediondos como autorizadores da prisão de adolescentes foi um grande trunfo dos arautos da repressão, já que a Lei dos Crimes Hediondos – Lei n.º 8.072/1990 (repararam no ano?) tem sido constantemente alterada para abarcar uma gama cada vez maior de delitos. Para que se tenha uma ideia dos crimes que podem facilmente ser rotulados pela hediondez, basta citar a falsificação de cosméticos, conduta que integra o rol desses crimes mais graves desde 1998.

A matéria ainda terá que ser votada em um segundo turno na própria Câmara, além de ser levada, também em dois turnos, à apreciação dos senadores. Apesar de o processo para a alteração constitucional ainda não ter sido encerrado, não se pode negar que o panorama que se desenha para as próximas votações não é nada animador para os defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Hoje, a violência é a segunda maior preocupação dos brasileiros, sobretudo dos mais ricos (Datafolha), e esse pânico moral, desde a década de 1990, tem deslocado a discussão pública sobre educação, trabalho, moradia, previdência etc. para os temas agrupados sob a rubrica da segurança. Somando-se a isso, a ideia de que o poder punitivo estatal pode resolver todos os problemas sociais (incriminando novas condutas, endurecendo penas, ampliando a parcela da população penalmente imputável) faz com que 87% (Datafolha) dos brasileiros sejam a favor da redução da maioridade penal. A larga adesão da população ao projeto da redução demonstra que a opinião pública do país que tem a quarta maior população carcerária do mundo e que conta com um déficit de mais de 200 mil vagas no sistema prisional acredita que mandar os adolescentes para a cadeia é uma medida capaz de reduzir a violência urbana e de tornar a sociedade algo mais segura.

Não se pode negar que o regime democrático tem o princípio da maioria como um de seus pilares. No entanto, se pretendemos consolidar uma democracia substancial, mais do que dar ouvidos ao maior número de pessoas é preciso reconhecer que os direitos fundamentais não são óbices às decisões coletivas: são, isso sim, uma conquista civilizatória da qual não podemos abrir mão. Renunciar a todos os direitos em nome de uma suposta segurança corresponde exatamente ao Estado irresistível e todo poderoso que Hobbes descreveu no século XVII. A obra era “O Leviatã”, monstro cruel e invencível que, por ter sido citado em um dos textos bíblicos, caberia muito bem na justificação apresentada pelo autor da PEC estelionatária.

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Diana é defensora pública e mestre em desenvolvimento regional. Escrever no Pandora Livre é parte do seu plano de se tornar uma burocrata descolada.

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